Face mais cruel do machismo, feminicídio vitimou 10 mil mulheres em 9 anos

Desde a tipificação do feminicídio no Código Penal, em 2015, crime foi aumentando ano a ano, juntamente com o crescimento das agressões e violência contra as mulheres

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Os diversos problemas que atingem uma sociedade pesam mais sobre os ombros das camadas mais oprimidas e vulneráveis — e nestas estão as mulheres. No Brasil, país historicamente violento, além de serem vítimas dos crimes comuns que atingem toda a população, elas ainda sofrem as consequências mais cruéis do machismo: a violência de gênero e sexual e os feminicídios. Esse tipo de crime vem crescendo desde 2015 e, daquele ano até 2023, 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídio. 

Somente em 2023, houve 1.463 assassinatos deste tipo, ligado à condição feminina, um crescimento de 1,6% em relação a 2022, o que equivale a uma mulher morta a cada seis horas. A média nacional de feminicídios foi de 1,4 por 100 mil mulheres. Os dados são de levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tendo como base os boletins de ocorrência registrados pelas Polícias Civis. 

Fonte: FBSP

O estado com a maior taxa de feminicídio foi Mato Grosso, com 2,5 mulheres mortas por 100 mil; por outro lado, o estado teve redução de 2,1% na taxa de vitimização por feminicídio. Em seguida estão Acre, Rondônia e Tocantins, com taxa de 2,4 mortes por 100 mil.

No sentido oposto, as menores taxas de feminicídio foram registradas nos estados do Ceará (0,9 por 100 mil), São Paulo (1,0 por 100 mil) e Amapá (1,1 por 100 mil). No caso de São Paulo, o FBSP aponta que “embora a taxa seja relativamente baixa quando comparada ao cenário nacional, entre 2022 e 2023 houve uma variação de 13,3%, saltando de 195 vítimas em 2022 para 221 no último ano”.

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O relatório lembra que no último ano, o governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (REP) congelou os investimentos focados no enfrentamento à violência contra as mulheres, postura que repete o que fez Jair Bolsonaro durante seu governo, marcado pelo desmonte de políticas públicas.

Considerando o recorte regional, o Centro-Oeste foi o que teve a taxa mais elevada nos dois últimos anos, com duas mortes por 100 mil, número 43% superior à média nacional. Já as regiões Sudeste (1,2), Nordeste (1,4) e Sul (1,5) registraram taxa de feminicídio abaixo da média nacional.

Lei do Feminicídio

A análise é feita tendo como ponto inicial o ano de 2015, quando passou a vigorar a Lei 13.104, que incluiu o feminicídio no Código Penal como qualificador do homicídio doloso e o tornou crime hediondo, o que aumenta a pena para 12 a 30 anos de prisão. 

Naquele primeiro ano, foram 449 casos, mas, conforme a análise do FBSP, é preciso considerar que havia grande número de subnotificações decorrentes do processo de incorporação da lei no sistema de segurança pública. Em 2016, o número saltou para 892. 

“Desde o início, existe um aumento nesses registros, muito mais intensos durante os primeiros anos de vigência da lei. Então, até 2018, a gente observa que há um crescimento mais significativo, mas ainda hoje a gente vê o aumento de registro desse crime ano a ano, ainda que menores”, explica, ao Portal Vermelho, Isabela Sobral, supervisora do Núcleo de Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

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Ela aponta que a primeira hipótese para esse aumento, principalmente por ele ser mais significativo nos primeiros anos de vigência da lei, “tem a ver com a melhor compreensão por parte das polícias civis, que são a fonte desse dado divulgado pelo fórum. Com o tempo, os policiais se tornam mais capacitados para identificar esses casos e, portanto, para classificá-los propriamente como esse tipo específico de homicídio e não como um homicídio doloroso comum”.  

No entanto, salienta, “essa hipótese faz sentido no início da série histórica porque existe esse aumento mais drástico, mas ainda hoje a gente observa que os números vêm aumentando”. Ou seja, há outras razões para que o crescimento tenha sido contínuo desde o início da série história. “A gente também observa aumentos em outros indicadores de violência contra a mulher. Então não é só o registro de feminicídio que cresceu nesse período”.

Descaso com a vida

O levantamento apresentado pelo Fórum trata especificamente dos feminicídios, mas pesquisas anteriores revelam a elevação nos casos de violência doméstica, agressão física e estupro, entre outros indicadores. 

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do FBSP, por exemplo, mostra um forte incremento nos casos de violência contra a mulher em 2022. Naquele ano, houve um aumento maior do que o verificado no ano passado, mais de 6%, com 1.440 vítimas de feminicídio, além de um salto de 16,9% nas tentativas desse tipo de assassinato. 

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Também foi registrado crescimento nos indicadores de violência doméstica: 2,9% nas agressões físicas (mais de 245,7 mil registros), 7,2% nas ameaças (mais de 613 mil), além de 102 acionamentos do 190 por hora. E, pior, houve o maior número de estupros da história, quase 75 mil, aumento de 8,2% em relação a 2021 — sendo quase 89% vítimas do sexo feminino. 

Os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontaram, no Anuário, algumas hipóteses para esses aumentos. “Em primeiro lugar, ressaltamos o desfinanciamento das políticas de proteção à mulher por parte da gestão de Jair Bolsonaro, que registrou a menor alocação orçamentária em uma década para as políticas de enfrentamento à violência contra a mulher”. 

O outro ponto foi o “impacto da pandemia de covid-19 nos serviços de acolhimento e proteção às mulheres, que em muitos casos tiveram restrições aos horários de funcionamento, redução das equipes de atendimento ou mesmo foram interrompidos”. 

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Também foi destacado “o cenário de crescimento dos crimes de ódio da ascensão de movimentos ultraconservadores na política brasileira, que elegeram o debate sobre igualdade de gênero como inimigo número um”. Cabe pontuar ainda o impacto da política armamentista envolvendo ameaças e crimes com uso de armas de fogo.

Para Isabela, esse cenário “mostra que o aumento no feminicídio talvez não esteja apenas relacionado à questão da melhor classificação, mas a um aumento geral da violência contra a mulher”. Ou seja, argumenta, “se a gente combater esses outros tipos de violência antes que cheguem a esse resultado mais grave, ao resultado letal, a gente pode impedir que o feminicídio aconteça”. 

Nesse sentido, Isabela avalia que o poder público, em todas as suas esferas, deve fortalecer as redes de apoio e combate à violência contra a mulher e, do ponto de vista da segurança pública, investir na disseminação dos protocolos de atendimento às mulheres nas delegacias comuns, para além do aumento das delegacias especializadas no atendimento à mulher, de maneira a ampliar e facilitar o acesso das vítimas aos seus direitos. 

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Desde o ano passado, o governo Lula já mostrou uma mudança de paradigma no tratamento da questão. Pela primeira vez, o país passou a ter um ministério exclusivamente dedicado às mulheres e diversas ações têm sido anunciadas, desde questões diretamente ligadas às mulheres quanto políticas transversais que incidem sobre a população feminina. 

Essa mudança de paradigma contribui para o enfrentamento e a superação do machismo e da misoginia, que estão na raiz de toda essa violência. Trabalhar com a educação e a formação da sociedade em geral, e dos homens em particular, em relação ao respeito às mulheres é outro fator fundamental para essa transformação social. Enquanto a parcela feminina da população for enxergada como inferior ou como mero objeto, a vida das brasileiras continuará em risco.