Câmara dos EUA aprova lei sobre antissemitismo que ameaça solidariedade à Palestina

O Vermelho ouviu especialistas que levantaram preocupações sobre eventuais censura e restrições às críticas ao Estado de Israel em escolas e universidades americanas

Acampamento Palestina Livre da Universidade de Harvard, organizado em abril-maio ​​de 2024 em apoio à Palestina. Foto; Dariusz Jemielniak (Wikimedia Commons)

A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou por uma ampla maioria um projeto de lei que busca expandir a definição federal de antissemitismo, apesar das preocupações levantadas por grupos de defesa das liberdades civis. A ideia do parlamentar republicano Mike Lawler, de Nova York, de codificar uma definição de antissemitismo, levanta preocupações sobre possíveis restrições às críticas ao Estado de Israel em escolas e universidades americanas. O texto, que segue agora para o Senado, recebeu uma votação de 320 a favor e 91 contrários, com apoio do Partido Republicano e de alguns democratas.

Essa medida surge em resposta aos protestos universitários em diversas instituições de ensino dos EUA contra o apoio de Washington a Tel Aviv na guerra na Faixa de Gaza.

Desde o início do conflito, com o ataque da resistência palestina em 7 de outubro de 2023, o número de vítimas palestinas tem aumentado significativamente, com 34.568 mortos e 77.765 feridos nos ataques de Israel ao território. Em resposta, estudantes de universidades americanas organizaram protestos, pedindo, entre outras coisas, o desinvestimento em empresas israelenses. Alguns desses atos foram criticados como antissemitas, especialmente por membros do Partido Republicano. A administração Biden e outros funcionários de Washington garantem apoio a Israel, apesar das crescentes preocupações humanitárias.

Leia também: Protestos pró-Palestina nas universidades dos EUA levam a confrontos e prisões

A pressão sobre as universidades para reprimir os protestos também aumentou, com alguns líderes retratando-os como intrinsecamente antissemitas. Os manifestantes, por sua vez, rejeitam essa caracterização, acusando os administradores de confundir apoio aos palestinos com antissemitismo e violando seus direitos.

Experimento genocida

Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal)

Em declaração ao Portal Vermelho, Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal) observa que quase 25% dos votantes na Câmara foram contra o projeto de lei, um número significativo que não pode ser ignorado. Ele destaca ainda que quase 45% dos democratas, partido do presidente Biden, votaram contra, sugerindo uma mudança na política dos EUA em relação à questão palestina e ao apoio a Israel.

“Se está assim na cúpula do poder nos EUA, imagine como está na base, especialmente entre a juventude”, diz Rabah. Ele acredita que essa mudança na opinião pública americana pode indicar uma viragem em relação à ocupação da Palestina e ao que ele descreve como “experimento genocida” do projeto colonial israelense.

O presidente da Fepal também expressa preocupações sobre os EUA se tornarem um modelo de totalitarismo, com Israel sendo usado como exemplo. Ele caracteriza o regime israelense como um exemplo de totalitarismo, onde a religião é usada para afirmar a supremacia e justificar o extermínio de populações inteiras.

Leia também: Universidade de Columbia faz greve contra repressão policial em protestos pró-Palestina

Rabah argumenta que a lei proposta nos EUA visa evitar que a insurreição social prejudique o “experimento genocida” em curso na Palestina. Ele vê essa legislação como uma forma de reprimir a contestação ao genocídio e ao totalitarismo, especialmente se essa contestação estiver ocorrendo nos próprios Estados Unidos.

Para Rabah, é importante que todas as forças contrárias ao genocídio na Palestina e ao modelo totalitário proposto estejam alertas. Ele destaca o apoio à lei não apenas de grupos sionistas, mas também de racistas assumidos na Europa, incluindo partidos políticos herdeiros do nazismo na Alemanha.

O crime da solidariedade

Emir Mouad, secretário-geral da Confederação Palestina Latino-americana e do Caribe (Coplac)

Emir Mourad, secretário-geral da Confederação Palestina Latino-americana e do Caribe (Coplac), expressou ao Vermelho suas preocupações sobre possíveis implicações para a liberdade de expressão e para o movimento de solidariedade com a Palestina.

Mourad descreve a lei como uma forma de “censura deslavada”, projetada para criminalizar qualquer manifestação de apoio ao povo palestino. Ele argumenta que a definição ampla de antissemitismo contida na legislação pode ser interpretada de várias maneiras, incluindo a proibição de erguer bandeiras palestinas ou expressar apoio à autodeterminação palestina.

“Entendi que ela dá margem a um amplo leque de interpretações”, diz Mourad. “Por exemplo, erguer uma bandeira palestina é antissemitismo. Dizer que é a favor da autodeterminação do povo palestino é antissemitismo.”

Leia também: Onda de ocupações anti-Israel já lembra protestos contra guerra no Vietnã

O secretário-geral da Coplac expressa preocupação com o nível de repressão que essa legislação pode desencadear, especialmente nos campi universitários dos Estados Unidos. Ele aponta para a influência do lobby sionista no Congresso americano como um fator significativo por trás dessa medida.

“Fica evidente que essa lei é para tentar esmagar e reprimir com toda a força a livre manifestação de expressão do movimento estudantil pro-palestino”, afirma Mourad.

Banalização do mal

Reda Soueid, especialista em Relações Internacionais

Reda Soueid, especialista em Relações Internacionais, destaca ao Vermelho o contexto político e social por trás da legislação e seu impacto potencial sobre as manifestações de solidariedade com a Palestina.

“Essa votação visa atingir diretamente as atuais manifestações que estão acontecendo nas universidades e, pelo jeito, tendem a se espalhar fora delas”, afirma Soueid. Ele aponta para a crescente adesão e apoio às manifestações pró-Palestina como o fator que deve ter motivado a aprovação dessa legislação.

Leia também: Acusação de antissemitismo é cortina de fumaça para encobrir apartheid e crimes de “Israel”

No entanto, Soueid observa que o uso do termo antissemitismo tem sido banalizado e instrumentalizado para reprimir qualquer manifestação anti-Israel ou anti-sionista, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Ele destaca que essa abordagem é particularmente clara na legislação proposta nos EUA.

Uma das observações mais interessantes de Soueid é o aumento da participação de judeus norte-americanos nas manifestações, o que ele interpreta como um sinal de que vozes judaicas antisionistas, que foram silenciadas por décadas, estão se manifestando. Ele menciona o caso do Brasil, onde os judeus antisionistas foram representados por Breno Altman e rotulados de antissemitas.

“O número de judeus no Brasil é muito pequeno comparado com o número de judeus nos Estados Unidos, que passa de 5 milhões”, destaca Soueid. “Esses 5 milhões, que recusaram a ir morar no Estado sionista, estão participando efetivamente nas manifestações. Isso atinge diretamente toda a propaganda que foi construída ao longo de décadas em relação ao sionismo, ao Estado de Israel, toda aquela propaganda positiva do estado democrático.”

Ele também observa que a votação bipartidária sobre o projeto de lei reflete um alinhamento entre democratas e republicanos que é incomum em questões tão importantes. Isso sugere, segundo Soueid, que o interesse do establishment norte-americano está acima de quaisquer divergências internas, especialmente quando se trata de apoiar o sionismo como seu instrumento.

Leia também: “Conflito na Palestina mostra que projeto sionista fracassou”

“Os judeus norte-americanos não querem levar a pecha de que cometeram genocídio. E eles sabem muito bem que o sionismo é um instrumento neocolonial, tanto nos Estados Unidos ou nos países europeus, que eles vêm sendo usados ao longo de todo esse período. Então, nós estamos assistindo ao fim de um ciclo de uma propaganda enganosa que tende a perder sua força, sua viabilidade”, conclui Soueid, destacando um possível ponto de viragem na percepção pública em relação ao sionismo e ao Estado de Israel.

Um estado e governo inatacáveis

A legislação adota a definição de antissemitismo proposta pela Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA) como oficial e determina que ela seja utilizada pelo governo federal na aplicação de leis contra a discriminação no sistema educacional americano.

Se aprovado, o projeto de lei incluiria uma definição de antissemitismo criada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) na Lei dos Direitos Civis de 1964. Essa lei federal antidiscriminação proíbe a discriminação com base em ascendência, características étnicas ou origem nacional. Incorporar a definição da IHRA à lei permitiria ao Departamento de Educação federal restringir o financiamento e outros recursos para campi universitários considerados tolerantes ao antissemitismo.

A definição de antissemitismo adotada na lei inclui uma série de exemplos que, para críticos, podem impedir críticas a Israel. Entre esses exemplos, a IHRA considera antissemita negar aos judeus seu direito à autodeterminação e comparar as ações de Israel com políticas nazistas na Alemanha. Alguns dos maiores intelectuais americanos e europeus, inclusive judeus, já fizeram essa comparação. São os casos do historiador Arnold J. Toynbee, o estudioso David Feldman, o cientista político Ian Lustick, político do exército britânico Edward Spears, o músico Roger Waters, a filósofa Hannah Arendt, filósofo israelense Yeshayahu Leibowitz, o historiador Omer Bartov, o linguista Noam Chomsky e até Yair Golan, o general israelense e vice-chefe do Estado-Maior.

A Fundação para a Paz no Médio Oriente (FMEP), é ainda mais explícita sobre a expansão do termo. “Nos últimos anos tem havido um esforço enérgico para redefinir o termo para significar outra coisa. Esta nova definição – conhecida hoje como a ‘ definição funcional de antissemitismo ’ da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, é explicitamente politizada, reorientando o termo para abranger não apenas o ódio aos judeus, mas também a hostilidade e a crítica ao moderno Estado de Israel.”

A União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), tradicional organização de defesa dos direitos civis nos EUA, criticou a legislação, afirmando que ela é desnecessária e pode congelar a liberdade de expressão em universidades ao equiparar críticas a Israel com antissemitismo.

Outras organizações de direitos humanos, como a ACLU, expressaram preocupações de que essa definição possa confundir críticas ao Estado de Israel e ao sionismo com antissemitismo. Em uma carta aos legisladores, a ACLU instou-os a votarem contra a legislação, argumentando que a lei federal já proíbe a discriminação antissemita.

Esses receios ecoaram na própria Câmara dos Representantes. Durante uma audiência, o deputado Jerry Nadler destacou que o escopo da definição era muito amplo, e o deputado Thomas Massie criticou o projeto por não fornecer clareza sobre quais partes da definição da IHRA seriam consagradas na lei.

Além disso, em outra resposta aos protestos universitários, deputados republicanos abriram um inquérito para investigar a verba federal repassada às instituições onde as manifestações têm ocorrido. Esse movimento levanta preocupações adicionais sobre possíveis repercussões para as instituições envolvidas nos protestos.

A republicana de Illinois, Mary E Miller, não foi escolhida a toa para a relatoria do debate. Ela é a autora da frase que levou-a a desculpar-se: “Hitler estava certo em uma coisa. Ele disse: ‘Quem tem a juventude tem o futuro’. Nossos filhos estão sendo propagandeados.”

Thomas Massie, um republicano de direita de Kentucky, disse que o projeto de lei era “uma armadilha política” projetada para dividir o Partido Democrata e prendê-lo em uma questão sobre a qual o partido está dividido. Os democratas, disse Lawler, estavam “tropeçando por causa da política eleitoral” em estados com grandes populações muçulmanas que tradicionalmente votam nos democratas.

Autor