“Os trabalhadores já saem daqui na condição de reféns”

Benedito Silva afirma:´ No Ceará há um panorama claro de organização de trabalhadores para o corte de cana em São Paulo´. Com o incentivo à plantação de cana-de-açúcar no Brasil, o Nordeste novamente se depara com o êxodo rural. O contexto faz surgir um o

Na última terça-feira (10/07), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) atualizou a ´lista suja´ do Cadastro dos Empregadores flagrados explorando trabalhadores na condição análoga à de escravos e o Ceará aparece. Como fica a lista agora?


 


Exatamente. Entrou uma empresa cearense: a Fazenda Soever, localizada em Beberibe, onde 40 trabalhadores já haviam sido libertados. Foram incluídos 51 nomes e retirados 22 empregadores. A relação passa a ter 192 nomes.


 


 


Hoje o Grupo Especial de Fiscalização Móvel continua no Paraná, próximo à Fazenda Capivari, em Campina Grande do Sul, onde há menos de uma semana, foi feito um flagrante de trabalhadores em situação degradante. Quais as irregularidades encontradas?


 


Detectamos vários cadernos de anotações de despesas de mantimentos e instrumentos de trabalho, além de notas promissórias assinadas em branco pelos trabalhadores. São sinais claros de que estavam sendo mantidos em regime de escravidão por dívida. O alojamento não possuía instalações sanitárias adequadas. Também encontramos oito trabalhadores com instrumentos de trabalho improvisados.


 


 


O que caracteriza, efetivamente, o trabalho escravo no Brasil?


 


Foi uma luta conseguir dizer o que é trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Os fazendeiros não admitem que o fenômeno existe, porque as características do trabalho escravo do Século XXI não lembram, em nada, as de antigamente.


 


 


E o que tem ajudado no processo de configuração deste crime?


 


Para a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho escravo significa a execução de qualquer atividade que o homem realizar, forçado por mecanismos econômicos, ou que não teve vontade própria para escolher. Normalmente origina-se com o deslocamento do trabalhador de sua região para outra distante. Se for forçado, é trabalho escravo.


 


 


Mas alguns setores dizem que há certa dicotomia nessa caracterização.


 


Penso que não. Temos aqui duas realidades distintas. Até meados de 2000 era mais fácil encontrar trabalhos em condições próximas às do Século XVII, com vigilância armada, agressões e maus-tratos. À medida que foi se dando o combate pelo Ministério do Trabalho (MT), com apoio da OIT, essas condições foram modificadas. Hoje, raramente, encontramos vigilância armada ou identificamos maus-tratos.


 


 


O que é constatado então nos locais onde estão os trabalhadores escravos da atualidade?


 


O que há são condições degradantes de trabalho e moradia. Atualmente, a condição análoga à de escravo é caracterizada pela existência de trabalhos forçados, jornada exaustiva, restrição da locomoção, em razão de dívida contraída, cerceamento de trabalho e outros.


 


 


Recentemente, foi realizado um flagrante em Boa Viagem, no Ceará. Já é possível afirmar que está ocorrendo um novo êxodo de trabalhadores para o sudeste do País?


 


Infelizmente. No Ceará há um panorama claro de organização de trabalhadores para o corte de cana em São Paulo. Temos feito palestras regionais tentando esclarecer sindicatos, entidades, Organizações Não-Governamentais (ONGs), pastorais do Migrante e da Terra, no sentido de explicar como acontece o aliciamento de trabalhadores. Pelas certidões liberatórias emitidas pela DRT/CE, em 2007, saíram cerca 3.500 trabalhadores registrados legalmente. Mas acreditamos que devem ter saído uns 10 mil ou mais de forma ilegal.


 


 


Existe assim um trabalho de conscientização com os trabalhadores no Interior?


 


Estamos nessa batalha para sensibilizar entidades que possam ajudar no combate a essas formas ilícitas de contratação. É preciso proteger o trabalhador cearense. Muitas vezes ele não tem condições de sobrevivência em sua cidade natal porque falta emprego. Vai embora em busca de melhoras e acaba sendo escravizado.


 


 


Como o grupo de combate está se estruturando para controlar essa vazão migratória?


 


Temos feito boas parcerias. Tanto o Ministério Público do Trabalho quanto a Polícia Rodoviária Federal têm nos apoiado nas ações de combate ao crime. No mês de junho, através do serviço de inteligência feito pelo Ministério Público do Trabalho e pela Polícia Rodoviária Federal, conseguimos deter um ônibus que estava saindo do município de Boa Viagem levando trabalhadores de forma irregular. Tivemos notícias de uma aliciadora que leva, paralelamente, grupos de trabalhadores de forma regular e irregular. Encontramos seis deles cujos documentos estavam retidos com uma terceira pessoa.


 


 


Que tipo de providência foi adotado pelo grupo de combate ao trabalho escravo?


 


Com relação a este caso, o carro foi detido e a mulher presa em flagrante. Eles eram das cidades de Boa Viagem e Trairi e não sabiam para onde estavam sendo levados para trabalhar.


 


 


O senhor poderia explicar em que condições os trabalhadores saem do Estado?


 


Estes trabalhadores já saem daqui na condição de reféns. Eles não têm o principal documento capaz de estabelecer uma relação de trabalho, a sua Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Ficam impossibilitados de seus direitos, e nem mesmo comprovar que trabalharam.


 


 


A aliciadora deu detalhes da atividade?


 


Ainda não fizemos uma investigação suficientemente boa para determinar quanto essa senhora ganha por cada trabalhador que leva. Sabemos que ela tem o ônibus, e que, quando consegue fechar um grupo, leva para São Paulo. Lá, quem paga o transporte desses trabalhadores é o dono da fazenda. Aparentemente ganharia somente nesse primeiro momento. Mas, quando estava presa, informou que prometeram, pelo carro fechado, mais R$ 3 mil.


 


 


Existe um acordo por parte dos aliciadores e donos de fazenda de que todas as pessoas terão trabalho garantido?


 


Embora informal, há um compromisso entre eles. Os trabalhadores dizem que todos conseguem trabalho.


 


 


Qual é o perfil deste novo trabalhador escravo?


 


Geralmente tem entre 20 e 40 anos, é analfabeto, sem formação técnica e vem do Interior.


 


 


Quais os principais municípios que se destacam na ´exportação´ para o trabalho escravo?


 


Está saindo muita gente dos municípios de Crato, Juazeiro, Cedro e Boa Viagem. No ano passado, identificamos no próprio Estado, condições degradantes de trabalhadores no corte de cana. Eles tinham saído de Itapajé para trabalhar em Beberibe. O grupo era formado por mais de 50 trabalhadores. Fizemos a retirada automática de todos do local.


 


 


O que acontece com os empresários que se aproveitam do trabalho escravo?


 


Eles são obrigados a arcar com todos os direitos trabalhistas, quando conseguimos identificar a irregularidade. O Ministério Público do Trabalho, que rotineiramente nos acompanha, firma o Termo de Ajuste de Conduta (TAC), em que o fazendeiro se compromete a não voltar a cometer os atos ilícitos.


 


 


O senhor poderia citar algum exemplo dessas operações?


 


Há dois meses, fizemos uma operação considerada, relativamente, grande no Pará, em que o fazendeiro entregou no TAC uma Mitsubishi L200 e dez notebooks para aparelhar o combate ao trabalho escravo.


 


 


Essas operações duram em média quanto tempo?


 


Depende. Algumas demoram até 15 dias. Escolhemos uma cidade próxima onde a ação vai se desenrolar. Armamos a estratégia, calculamos quantos quilômetros de estrada de chão e tentamos entrar na propriedade até o meio-dia. Se a gente entrar muito tarde não tem como retornar. Além de não ser bom dormir dentro da fazenda.


 


 


Quanto ao trabalhador, ele sempre deseja voltar para o lugar de origem?


 


Quando resgatamos trabalhadores encontrados em condições análogas à de escravo, a maioria quer voltar. Mas, muitos deles quando saem do Piauí e Maranhão, por exemplo, considerados os maiores exportadores de mão-de-obra escrava no Brasil nos últimos dez 10 anos, perdem as raízes e ficam nas regiões das fazendas. Eles ficam conhecidos pelo nome ‘peão de trecho’.


 


 


Isso mostra que há casos de reincidência por parte dos próprios trabalhadores?


 


Sim. Já chegamos ao absurdo de resgatar o mesmo trabalhador cinco vezes.


 


 


Qual a leitura que o senhor faz dessa realidade que não deixa de ser cruel?


 


À primeira vista, poderia parecer um jogo deles, mas não é.


 


 


Como o senhor chegou a esta conclusão?


 


É que o trabalhador não sabe fazer outra coisa na vida. E ainda não descobrimos mecanismos para que ele possa aprender outro ofício imediatamente.


 


O que poderia ser feito por essa pessoa?


 


O Estado precisa descobrir formas de engajar o trabalhador resgatado em programas de treinamento.


 


 


Fonte: DN