Adriana Calcanhoto: música de criança que diverte adulto também
Quando Adriana Calcanhotto tinha três anos, perguntavam o seu nome e ela respondia, convicta: Adriana Partimpim. O pai da futura cantora achou tão engraçado que adotou o apelido definitivamente. Mal sabia ela que a fantasia viraria pseudônimo, e que ele renderia dois álbuns infantis. O recém-lançado “Partimpim 2” reúne composições autorais e versões de músicas de Heitor Villa-Lobos, Roberto e Erasmo Carlos, João Gilberto e até Bob Dylan.
Publicado 07/10/2009 12:30
“A meta principal era não fazer o álbum soar como um disco infantil”, diz Adriana. “Música para criança que aborrece os adultos é na verdade uma música aborrecida. E acho que na realidade as crianças ouvem o que está no mundo adulto: na TV, no rádio, na internet, no carro. Muitas vezes elas elegem coisas que não foram pensadas para elas. O ‘Circo místico’ [de Chico Buarque], por exemplo, não sai de catálogo porque as crianças compram. Uma das coisas que me movem é fazer música para que as crianças se divirtam e os adultos também.”
Adriana diz não gostar das separações por gêneros. “A única maneira de deixar a música realmente mudar a sua vida é ouvir com os ouvidos abertos.” Num mercado marcado pela frivolidade e busca pela novidade, Adriana Partimpim mostrou que o público infantil pode ter os ouvidos bem maduros. Assim como no primeiro disco, que incluía Ciranda da Bailarina, de Chico Buarque e Edu Lobo, a cantora resgata em Partimpim 2 compositores brasileiros consagrados, como João Gilberto, Caetano Veloso, Vinicius de Moraes e Villa-Lobos.
Do último, Adriana emprestou O Trenzinho do Caipira, música composta em 1930 e que é um dos quatro movimentos da peça Bachianas Brasileiras nº2. Nela, que ganhou posteriormente letra de Ferreira Gullar, a orquestra reproduz os movimentos de uma locomotiva.
Em Bim Bom, Adriana juntou João Gilberto ao Olodum. No ritmo dos tambores, ela ouvia também as batidas do violão de João Gilberto, então decidiu juntar os dois e fazer um samba enquanto canta "é só isso o meu baião".
Nessa "aula de clássicos para crianças" entra até Bob Dylan, em versão em português de Zé Ramalho. O homem deu nome a todos animais ganhou caráter pedagógico na voz de Adriana e com o coral de crianças, que fazem uma Arca de Noé musicada.
Enquanto As Borboletas, poema de Vinícius de Moraes musicado por Cid Campos, tem poucos e simples versos, Alexandre, de Caetano Veloso, é extensa e com vocabulário mais complexo. "Acho interessante as palavras, o Caetano arma frases, nomes do mundo helênico. As crianças são fascinadas por esse universo".
Adriana diz que a música fez com que visse Alexandre, o Grande não só como um guerreiro sanguinário, mas como um herói, bom e mau, misturador de raças. "Acho o jeito que o Caetano apresenta interessantíssimo. Fiquei muito impactada, mudei minha visão de Alexandre por conta do jeito que o Caetano fala dele".
Se Adriana Partimpim consegue trazer o mundo musical dos adultos para o público infantil, também conquista, com a "música de criança", o público mais velho.
"As crianças podem ouvir um disco que é delas, sem aborrecer os adultos. Não acho legal elas ficarem segregadas, ouvindo as músicas do 'escaninho infantil'. Eu vejo isso muito pela experiência do show, na plateia tem sempre os adultos e as crianças juntos. Considero isso um privilégio."
Adriana diz que, desde a primeira vez em que pensou em fazer música para crianças, já tinha em mente fazer uma discografia, mas que "dependeria sempre de ter repertório". "Na verdade, construir um repertório não tem ligação com a quantidade. Quando fiz o primeiro disco, embora tivesse uma lista de possibilidades, não fui trabalhando ele antes, só jogando músicas dentro dessa lista enorme", recorda.
"Em maio desse ano, algumas canções saltaram dessa lista, e decidi gravar imediatamente, ao ver que tinha repertório". Esse jeito de gravar "sem pensar" é uma novidade para Adriana, que diz conviver um bom tempo com as canções quando usa o sobrenome Calcanhotto. A experiência, contudo, foi aprovada.
"Isso cria uma espontaneidade, um frescor que eu queria, desse encontro dos músicos com a canção pela primeira vez. É uma forma mais lúdica e natural do que quando começo a pensar".
A nova forma de trabalhar também deu à Partimpim e sua banda liberdade para experimentar novos ritmos e instrumentos – violão, sintetizadores e sanfona se revezam no disco, que tem até um frevo eletrônico (a faixa de abertura Baile Particumdum) Mesmo passeando por vários estilos, Partimpim 2 consegue diversificar mantendo a coesão.
Talvez o que ajude a unidade dw trabalho é um "espírito Partimpim", que Adriana encontra na hora de definir o repertório. "Não sei dizer o que me faz escolher determinada música, é tão subjetivo, acho que é um 'ouvido Partimpim'. Pode aparecer em qualquer contexto, é um clique que dá, aí a música vai para a lista".
Uma das canções que saiu da lista para o CD foi Na Massa, composição de Arnaldo Antunes e Davi Moraes. "As imagens de Na Massa são incríveis, você enxerga o que o Arnaldo está dizendo. Acho uma canção primorosa, e muito Partimpim, com aquelas fantasias, roupas loucas, e ecoa também no Baile Particumdum".
O Baile foi uma descoberta de Adriana que, mexendo com loops e programações no computador, descobriu que uma batida de dance, quando no andamento certo, virava um frevo acelerado. A letra, que diz que "todo mundo pode, pode tudo", mostra o espírito do disco, aberto a todas as experimentações. A cantora também compôs Ringtone de Amor, feita em 2007 especialmente para celulares, e que só entrou no disco por causa dos pedidos das crianças.
"Isso me interessou muito, compor um ringtone, não uma canção pra estar num suporte físico. Acho que para as crianças é mais natural esses elementos tecnológicos, eletrônicos, elas lidam muito com celular".
O amor é outra palavra muito presente em Partimpim 2. Além de Ringtone, Menina, Menino também é focada no sentimento que "começa quentinho e pode queimar". "Escrevi há uns dois anos. Gostei de armar uma canção que fala disso, para que a criança já entenda que o amor é motor de mudança".
A romântica Gatinha manhosa, de Roberto e Erasmo Carlos, também ganhou versão Partimpim. "É a primeira vez que uma canção se lança para dentro do disco. Ela nunca esteve na minha lista em nenhum momento".
Durante as gravações, Adriana ficou obcecada com a música, que ainda não conhecia direito, e ficava cantarolando "com a letra errada". Acabou pedindo para lhe ensinarem a tocar, e decidiu gravar: "É uma musica tão conhecida, mas é nova pra alguém, ela é nova para mim e para as crianças pequenas".
E as crianças também fazem parte do disco, "cantando e fazendo bagunça" nas gravações. Colaboraram também os insetos da floresta da Tijuca, em As Borboletas.
Leia entrevista com a cantora a seguir.
Como foi escolher o repertório do álbum? Existe algum elemento que chama a sua atenção nas músicas quando prepara um repertório infantil?
É uma mistura de elementos, algo muito subjetivo. É dificil explicar o que vai me fazer botar aquela canção na lista de possibilidades. Às vezes acontece como em “Alexandre”, do Caetano. Eu achava a gravação dele tão perfeita que a música não precisava ser gravada novamente. Aí pensei que para as crianças ouvirem seria um outro contexto, então achei muito bacana gravar.
Aconteceu algo parecido com “Gatinha manhosa”, de Roberto e Erasmo Carlos?
Essa foi uma canção que quis ser gravada. A escolha dessa música foi algo que aconteceu pela primeira vez na minha vida. Ela sequer esteve jamais na minha lista de possibilidades. Nunca tive relação especial com essa música, tanto que quando estava com ela na cabeça fiquei cantarolando a letra errada, tamanha a falta de intimidade. Achei muito bacana uma canção querer ser gravada, e não vi por que não atender. E uma coisa legal é que percebo impresso no som que aquilo é novo para mim, apesar de todo mundo conhecer.
A sonoridade das canções vai da música eletrônica aos ritmos nordestinos. Houve uma preocupação em variar os estilos?
Isso é uma consequência, acontece na etapa dos arranjos. Eu não escolheria as canções com esse critério. O que me chama atenção é um todo: o que o autor está dizendo, o que o poema está dizendo, de que forma ele está encaixado naquela melodia. Aí depois a maneira de registrar, de tocar, é que tem um pensamento especificamente rítmico, melódico, ou de timbragem.
Como você se prepara pra gravar como Partimpim?
Isso é bastante fluido. A Partimpim carrega objetos, ela gosta de acúmulo, guarda coisas. Ela guardou todos os bilhetes e brinquedos que ganhou das crianças, é o oposto da Calcanhotto. Ela leva tudo para o estúdio, convive com aquelas coisas, e as pessoas que estão trabalhando no projeto acabam contaminadas com isso. Quando me dou conta os músicos estão lá, cheios de ursinhos. É como se fosse um fio de meada, você puxa e deixa ir.
De que maneira surgiu a vontade de gravar um repertório infantil? Você já havia tido contato com esse universo antes?
Veio de algumas ideias comuns, mas bastante exteriores. Uma delas era: por que não oferecer uma alternativa para um público que ouve sempre o mesmo modelo de disco? Eu acho que tem de ter tudo, não tem de patrulhar nada, mas não pode ter uma coisa só. Acho que na música brasileira a gente tem o privilégio de ter tido autores como Villa-Lobos, Vinicius de Moraes, Chico Buarque – pessoas que se dedicaram à música para crianças no mesmo nível em que fizeram música e poesia para adultos.
Durante um tempo teve um certo vácuo. Só em 1994, quando trabalhei com o Hermeto Pascoal – ele chegou no estúdio com um monte de patinho de borracha – é que eu vi uma coisa menos abastrata, mais ao alcance das mãos. Aí eu me lembro de ter pensado concretamente. A partir daí comecei a selecionar o repertório. É uma lista que existe até hoje.
Como a presença de crianças no estúdio, como Mano Wladimir, filho de Marisa Monte, afetou as gravações?
A gente cometeu a insanidade de soltar 37 crianças no estúdio durante a gravação. Teve o mínimo possível de aduto. Nem todos estão nos créditos do encarte porque alguns eram bebês e não cantaram. Foi muito bacana, eles ficaram encantados com tudo, era o mundo maravilhoso do estúdio, da invenção da música. E também foi o primeiro contato que o disco teve com o mundo, as crianças vieram ouvir e cantar com a gente.
Como você chegou à versão infantil de Bob Dylan para “Man gave name to all the animals”?
Eu estava começando a trabalhar numa versão dessa música e estava vendo o tamanho da encrenca. Naquele momento eu vi na internet que estava saindo o disco do Zé Ramalho com músicas de Bob Dylan aprovadas pelo próprio Dylan. Comprei o disco, tinha a canção e eu acho que estava muito bem resolvida. Fiquei felicíssima.
Você fará shows de ‘Partimpim 2’ em 2010?
Eu não faria um disco esse ano, porque ainda estou divulgando o álbum “Maré”, mas ele se apresentou para mim com uma urgência, uma necessidade de ser feito logo, e eu não trabalho assim em geral, isso é muito novo ainda. Eu decidi apostar nisso, mas já tinha compromissos marcados, shows na Europa. Mas, no ano que vem, a ideia é tocar pelo Brasil.
Com agências