“Lola”: Duas vítimas
Diretor filipino Brillante Mendonza discute a situação da mulher e o papel do Estado e da Justiça em seu país
Publicado 30/08/2011 18:51
Duas mulheres nas Filipinas de 2009, vítimas de tragédia familiar, terminam por encontrar pontos de identidade entre elas. Ambas são idosas, sofrem de idênticas doenças da terceira idade, vivem em condições subumanas e sustentam filhos e netos. O neto de Sepa (Anita Linda) foi morto pelo de Puring (Rustica Carpio) na capital, Manila. Este é o mote que desencadeia a radiografia do subproletariado filipino, traçada pela roteirista Linda Casimiro e o diretor Brillante Mendonça em “Lola”, avó em tagalo, língua oficial filipina. Com uma força que mostra o quanto a pirotecnia é desnecessária, salvo para atestar a falta de criatividade do cinema atual.
É fácil encontrar na tragédia de Sepa e Puring ecos do neorrealismo, brotado dos escombros da II Guerra Mundial. Ambas trazem na face, na voz e no andar os traços do sistema capitalista que as confina em espaços miseráveis. Sepa, aposentada, vive com filha, nora e netos num dos bairros erguidos no alagado. E se locomove abaixada pelos cômodos da casa de madeira. Puring, vendedora ambulante, divide cômodos paupérrimos com o filho deficiente físico e dois netos. E mantém na face um sorriso que representa vivacidade, mas também a única saída que tem para driblar suas agruras.
Estes matizes as transformam em personagens neorrealistas, mas em “Lola” há mais. Elas não têm nenhum Plano Marshall para salvá-las. Casimiro e Mendonza usam-nas para denunciar a perpetuação estratificada da miséria em seu país. Mendonza, numa narrativa em planos sequências facilitada pela câmera digital, vai, aos poucos, descortinando a situação de cada uma delas. Sepa, em meio à tempestade, parte do local onde o neto foi assassinado para revelar sua vida. A cada passo, o espectador se envolve com ela, sem dela sentir pena. Como personagem brechtniano, ela é “avó coragem”. Nada a demove, embora o meio em que se locomove lhe seja adverso.
Porém, a dor a impele a dar um funeral digno ao neto, segurança de uma transportadora. Há um ritual para que o consiga. Ele inclui o “mercado dos funerais”, onde a oferta variada de caixões e adornos demonstra o quanto a morte é cara. Em certas circunstâncias mais do que viver. Sua luta para arranjar o dinheiro é verdadeira epopéia. Além disso, cabe a ela, não à nora, registrar queixa na polícia e testemunhar no tribunal. Uma característica da justiça filipina, que deixa a cargo do familiar da vítima aceitar ou não a negociação proposta pelo familiar do culpado. Não é justiça a cargo do Estado, mas da família, salvo se esta não aceitar.
Não há culpados,
só vítimas
Causa estranhenza ao ocidental, acostumado ao punho do Estado, ainda que este nem sempre traduza sua ação em Justiça, de fato. Mendonza, num enquadramento genial, mostra a estátua da Justiça, cega e imparcial, açoitada pelo vento, como se perdida e inútil em meio à tempestade. Porém, Puring, o outro vértice desta tragédia, igual em centenas de grandes centros urbanos planeta afora, enfrenta semelhante barreira para evitar que o neto apodreça nas superlotadas cadeias filipinas. Como Sepa exige justiça, pois seu neto era um dos esteios da família, Puring tem de encontrar uma forma de entrar em acordo com ela. Paradoxal, sem dúvida, entretanto explica as diferentes faces da Justiça no sistema capitalista.
Os meios usados por ela para livrar o neto Mateo Burgos (Ketchup Euzebio) da cadeia vão do ardiloso ao trapaceiro. Tão incansável quanto Sepa, ela encontra tempo para alegrar o filho e os netos e ainda se submete à truculência dos fiscais da prefeitura de Manila, que confisca sua mercadoria. Suas perambulações de trem, barco e mototáxis permitem a Mendonza pôr o espectador em contato com a realidade de um país de 300.000 km2 e 92 milhões de habitantes, 19 milhões deles na região de Manila, os demais distribuídos por Mindanao e por outras das sete mil ilhas que o compõem. Assim, transitando por áreas superpovoadas, Puring é outro retrato da “avó coragem”. Entre ela e Sepa não há “culpada” e “vítima”, ambas são vítimas.
A sequência em que Mendonza coloca-as frente a frente, como duas mulheres idosas, responsáveis por algo que está acima delas, o exemplifica. Por iniciativa de Puring conversam sobre suas doenças, os falecidos maridos, a situação em que se encontram. Não são mais querelantes à mesa, se transformaram em espelho uma da outra. Ainda que se critique a Justiça feita daquela forma, não há como culpar a Puring: é a única saída que tem. Mendonza deixa apenas a câmera ligada, quase não interfere. Parece uma conversa particular, quase secreta. E elas se entendem.
No desfecho de “Lola”, fica a ideia de que a condição atual da mulher é indiferenciada no planeta. Não é mais o matriarcado, com suas imposições feudais, sim a decantação de um papel social que faz com que Sepa e Puring arquem com a manutenção e a unidade de suas famílias. E se o Estado, como no caso, não assume seu papel, elas o faz com muito mais eficácia. Casimiro e Mendonza deixam ao espectador aceitar ou não esta visão. Porque, encerrada a demanda, as avós continuam sofrendo o açoite da tempestade, agravado pela negligência do sistema capitalista que só lhes impõe sacrifício.
“Lola”. Drama. França/Filipinas. 2009. 110 minutos. Fotografia: Odyssey Flores. Roteiro: Linda Casimiro. Direção: Brillante Mendonza. Elenco: Anita Linda, Rustica Carpio, Ketchup Euzebio.