“Atrás da Porta”: Ecos do Passado
Através da relação da doméstica Emerenc e com um casal de professores, cineasta húngaro István Szabó revisita o Socialismo Real em seu país.
Publicado 09/05/2013 12:36
Os fios que normalmente reforçam o tema central no cinema e na literatura, muitas vezes diluem o que deveria ser o principal. É o caso deste “Atrás da Porta”, do cineasta húngaro István Szabó (“Mefisto”, 1981). Passado na Budapeste dos anos 60 é centrado nos confrontos da doméstica Emerenc (Helen Mirren) com o casal Magda (Martina Gedeck)/Tibor (Károly Eperges). Mas joga para segundo plano o que na verdade é o centro da trama: a luta de classes na época do Socialismo em seu país (1949/1987), ainda que tratado na forma de choque entre personalidades.
Esta visão da escritora Magda Szabó (1917/2007), em cujo livro se baseia o filme, se sobressai nas ríspidas conversas de Emerenc com o casal Magda/Tibor. Principalmente no início, quando ela se recusa a ter uma rotina de trabalho à maneira do casal, quer fazer tudo a seu modo. O espectador ri de sua “petulância”, pois suas “exigências” invertem as relações patrão-empregado no Capitalismo. Neste, ela seguiria o que lhe for ordenado, sob risco de demissão. Porém, o que parece “petulância” é o que norteia as relações de trabalho numa sociedade sem classes.
No Socialismo inexiste diferença hierárquica entre o trabalho manual e o intelectual, um não é superior ao outro. Sua contribuição para o produto final, embora diferenciada, é igual. Assim Emerenc executará suas tarefas a contento, cozinhando e arrumando a casa, sem sentir-se inferior. Pode exceder-se, caso da escultura, sem confundir os diferentes papéis exercidos por ela e o casal Magda/Tibor. A suposta “cordialidade” entre patrões e empregados no Capitalismo só facilita a exploração do trabalhador manual ou intelectual.
Losey foi mais radical
Mesmo que se queira, pelas vias da socialdemocracia, incentivar a cooperação de classes entre a burguesia e os trabalhadores, explorador e explorados, seus interesses são conflitantes e irreconciliáveis. Daí Emerenc aferrar-se à sua privacidade, a não compartilhar da intimidade do casal Magda/Tibor, até suas forças exaurirem-se. Em “O Criado” (1963), Joseph Losey foi mais longe. O criado termina por assumir o comando da mansão do nobre decadente. Szabó preferiu diluir o conflito Emerenc/Magda/Tibor em outros fios narrativos.
Esta diluição em outros três fios termina por enfraquecer o embate entre Emerenc e o casal Magda/Tibor. I – A insistência no que ela esconde em sua casa; II – Que segredo guarda de seu passado; III – A relação de Magda com o Governo Húngaro à medida que seus livros fazem sucesso. O primeiro fio pode ser visto como sua ferrenha luta para manter sua privacidade, mas também se ela esconde algo que irá chocar a vizinhança e o casal Magda/Tibor; o segundo Szabó logo desvenda, mesmo que não totalmente, e o terceiro é o mais importante, pois trata do papel do intelectual no Socialismo.
O temor de Magda de que haja interferência nos temas escolhidos para seus livros logo se esmaece. Nem o partido nem o Governo interferem em seu trabalho. Começam a reconhecê-lo através de premiações e homenagens. Szabó não aprofunda esta questão, tão polêmica ainda hoje. Volta sempre ao universo de Emerenc que insiste em fechar-se em seu mundo, cheio de mistérios, alguns reais, outros vistos como autopunição. Esta se manifesta na contínua retirada da neve acumulada na calçada, ainda que sob risco de adoecer. Ninguém imagina o que seja.
Mirren enriquece o personagem
Mas então a narrativa já está na terceira parte, afunilando-se para o desfecho. O clichê dos mistérios já se sobrepôs ao seu embate com o casal Magda/Tibor. O filme tornou-se então um drama comum. O espectador fica à espera de as caixas de surpresas se abrirem. É o que faz Szabó. O primeiro fio não corresponde às expectativas. É tão frágil que desanima. O segundo, melhor elaborado, ainda se desdobra em outras sequências quase desandando num melodrama. É melancólico, cheio de culpa cristã. E a vida de Emerenc tão rica e significativa se transforma numa busca de recompensa.
Restam para consolo do espectador as diatribes de Emerenc contra Deus e a fé cristã de Magda. “Esse Deus seu, não é tão bom assim. Ele não vê todas as coisas (citação não literal)”. Ou sua insistência em treinar o cachorro do casal, para que a obedecesse a ponto de ele seguir mais a ela que a Magda. Ou ainda não atender o casal quando este lhe solicita. Sua força decorre da capacidade de a atriz inglesa Helen Mirren (“A Rainha”, 2006) construir um personagem assustador e ao mesmo tempo tão humano.
Os demais personagens, sobretudo Magda e Tibor, empalidecem diante dela. Eles refletem o status quo, do qual Emelec quer se distanciar. Ao espectador pode parecer capricho, no entanto, não fossem suas insistências nos dois primeiros fios, Szabó poderia ter construído um filme que, embora cheio de condescendência por parte do casal Magda/Tibor, revelaria a inversão de papéis nas relações de trabalho no Socialismo Real e o direito de Emerenc trabalhar, aí sim, em termos igualitários. Infelizmente não é o caso.
“Atrás da Porta”. (“Hinter Der Tür”).
Drama. Alemanha, Hungria.
2012. 99 minutos.
Fotografia: Elemer Ragalyi.
Roteiro: Andrea Vészits, istván Szabó, baseado no livro de Magda Szabó.
Direção: istván Szabó. Elenco: Helen Mirren, Martina Gedeck, Károly Eperjes.