Por que os EUA vêm agredindo a China nos últimos dias?

Nas últimas duas semanas temos presenciado a elevação do tom do presidente dos EUA com constantes ameaças à República Popular da China, chegando mesmo a ameaçar romper relações diplomáticas com esse país com quem reatou relações diplomáticas no histórico aperto de mão entre Mao Zedong e Richard Nixon em 21 de fevereiro de 1972. Pretendo sistematizar neste artigo de análise geopolítica mundial, quais são as principais razões dessa radicalização.

Observando a cena internacional diuturnamente nas últimas semanas, é visível à maioria dos cidadãos  o aumento do discurso radical contra a China, partindo dos EUA. Essa radicalização surgiu quando do início da pandemia de coronavírus. Se por um lado a China decretou rigorosa quarentena na cidade de Wuhan (nove milhões de habitantes), situada na província de Hubei (60 milhões de habitantes). Não é nada fácil você isolar esse contingente de pessoas, colocá-las em quarentena e conter a epidemia dentro da China como ocorreu.

Os EUA, por outro lado, tal qual também o Brasil vem fazendo, tratou com desprezo a gravidade da forma como a doença se espalha e de seu índice de mortalidade. Começaram muito tarde o isolamento social e hoje amargam o topo do número de infectados e o de mortos (o Brasil chegará perto ou até mesmo ultrapassará os números dos EUA).

Os EUA terão eleições em novembro, com Donald Trump candidato à reeleição. Não há guerras em curso no mundo e tenho dúvidas se ele deflagará uma nova (tudo é possível, como as ameaças à Venezuela, que vêm crescendo dia a dia). Essa Nação guerreira aproveita-se de guerras e conflitos para beneficiar presidentes candidatos à reeleição. Os Estados Unidos vivem disso. Estima-se que pelo menos um em cada quatro estadunidenses têm uma relação direta com a indústria armamentista e das forças armadas.

No entanto, não há uma razão aparente que justificasse a elevação do tom do discurso e no limite, até o rompimento de relações. Em especial porque os EUA, desde 1985, o déficit da balança comercial com a China vem crescendo assustadoramente. Em 2018 esse déficit chegou a 419 bilhões de dólares, ou seja, os EUA dependem muito mais da China do que o contrário.

Trump vem ameaçando impor mais taxas e tarifas de importação com finalidade de dificultar a exportação chinesa para os Estados Unidos. As ameaças verbais soam como piada para os chineses. Costumo comparar isso a uma situação em que uma pessoa seja o dono de uma venda em um bairro e o maior freguês dessa venda seja seu inimigo na região. O dono da venda não gosta dessa pessoa, mas depende de que ela compre seus produtos e, portanto, não pode romper com ela.

Não estou afirmando que não se possa chegar ao rompimento. É possível dizer que, sendo a China detentora de títulos do tesouro dos EUA, em valores que superam um trilhão de dólares, sejam outro fator nessa guerra. Acho que os EUA devem estar avaliando se apropriar desse montante. Isso, claro, se ocorrer, levaria à desmoralização do sistema de comércio de títulos estadunidenses. Por que dariam calote na China e em mais nenhum outro país? De um dia para outro os EUA conseguiriam ficar sem o equivalente a 500 bilhões de dólares em mercadorias que eles vêm comprando da China nos últimos anos? Penso que isso seria quase impossível.

Nesse sentido, arrolei vários fatores que tenho observado e os sistematizo a seguir, dividindo esses fatores em blocos por similaridades de temas, excluindo-se o fator econômico do qual já relatei anteriormente:

1. Aspectos Militares

Sabemos da invencibilidade hoje do poderio armado dos EUA, especialmente suas seis frotas navais em operações no mundo. Apenas para ilustrar isso, quero apresentar aqui números relacionados com navios do tipo “porta-aviões” (aircraft carrier em inglês). Existem 24 dessas máquinas de guerra em operações no mundo hoje. E apenas nove países os possuem. É uma espécie de clube tão fechado quanto o clube nuclear que também tem nove membros (EUA, Rússia, China, França, Inglaterra, Paquistão, Coreia Popular, Israel e Índia).

No caso dos porta-aviões, quatro países possuem apenas um: França, Rússia, Espanha e Tailândia. Os países que possuem dois porta-aviões são: Itália, China, Índia e Inglaterra. Os Estados Unidos possuem 11 porta-aviões! (registre-se que apenas nove em capacidades operacionais). É um poderio militar jamais visto na história da humanidade.

No entanto, aqui entra o poder militar chinês. Ainda que a China não tenha condições – e também não quer isso – de afrontar militarmente os EUA, ele vem crescendo. Além de ter 2,5 milhões de soldados em suas forças armadas, melhor treinadas na Ásia, contra 2,1 milhões dos EUA, os dois porta-aviões são os mais modernos do mundo (Liaoning e Shandong) e um terceiro entrará em operação em breve. A China não tem pretensões de navegar em todos os mares e oceanos, como faz os EUA com suas frotas. A China quer proteger o seu Mar ao Sul de sua costa marítima, justamente a região mais sensível onde fica Taiwan, que é chamada de “província rebelde”.

Além disso, quero acrescentar um novo fator a ser considerado. Em 2001, a China articulou a fundação de uma instituição chamada de Organização de Cooperação de Xangai (guardem bem esse nome). Envolve além dela própria, a Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão, Índia e Paquistão como membro plenos e mais quatro países observadores que são o Afeganistão, a Bielorrússia, o Irã e a Mongólia. Esses países possuem juntos 40% da população da terra e uma força armada que chega a quase 10 milhões de soldados.

2. Aspectos diplomáticos

A China, junto com o nosso Brasil – quando ainda éramos um player na geopolítica mundial – é cofundadora do bloco BRICS, que envolve ainda a Rússia, Índia e África do Sul. Essa articulação diplomática dispensa apresentações pelo que ela representa em termos de poder econômico. Ele vem se reunindo uma vez ao ano desde 2009 (em julho de 2014 o Brasil sediou a 6ª Conferência de Cúpula sob a coordenação da presidente Dilma Roussef) onde, entre tantas decisões importantes, foi criado o Bando de Desenvolvimento dos BRICS com capital inicial de cem bilhões de dólares.

Uma das discussões que se vem fazendo, com cautela e moderação, é a criação de uma cesta de moedas que pudessem ser aceitas em todo o comércio internacional, em especial na conta de petróleo. Falou-se em moedas como, além do dólar estadunidense, o Yen (japonês), o Yuan (chinês), o Rublo (russo) e até o Real (Brasil). Mas, para desespero dos EUA, a China iniciou no dia 4 de maio passado, os testes sobre uma nova moeda digital e com lastro e garantia não só do governo, mas que poderá vir a ser em ouro, como já foi no passado com o próprio dólar, desde os acordos de Breton Woods nos EUA em 1944 (essa paridade, esse lastro foi quebrado por Nixon no dia 15 de agosto de 1971).

Essa articulação do bloco dos BRICS faz a China – com a Rússia, claro – defensora de um mundo multipolar, de forma que já viveríamos uma transição de um mundo unipolar, estabelecido a partir de dezembro de 1991, com o fim da URSS, para esse mundo com vários polos de poder, sem que nenhum tenha a pretensão de conquistar a hegemonia.

A China vem expandindo as suas relações políticas e principalmente econômicas pelo mundo afora, em especial na África onde tem muitos investimentos. Até o Brasil está nessa rota de investimentos, apesar de todos os ataques que este governo vem fazendo à China. Não para menos, as reservas chinesas ultrapassam os três trilhões de dólares.

3. O enfrentamento da pandemia mundial de coronavírus

As notícias são diárias e todos sabemos que a China está com o maior protagonismo no enfrentamento dessa pandemia mundial. Não só pelas informações que tem prestado à Organização Mundial de Saúde, como a sua solidariedade internacional prestadas a diversos países, seja com o envio de médicos (tal qual como Cuba), mas com ventiladores/respiradores e equipamentos de proteção individual (máscaras, aventais, luvas etc.. Os EUA, ao contrário, fecharam-se em si mesmo, bloquearam fronteiras, não ajudaram nenhum outro país e avisaram ao mundo que se descobrirem a vacina, esta não seria um patrimônio da humanidade, ao contrário como declarou o presidente chinês Xi Jin Ping na abertura da Conferência Anual Consultiva do Parlamento Chinês, realizada no dia 21 de maio.

A OMS tem sido mais um dos fatores de divergência entre a forma que Trump nos EUA “combate” a propagação da doença e a adotada pela maioria dos países, em especial a China que já conteve a doença. Trump acusa a OMS de estar sendo conivente com a China, em especial acusa aquele país de ter sonegado informações sobre a epidemia. Chega a dizer que o vírus surgiu na China, sem nenhuma prova disso. Por esses dias mesmo o chefe da diplomacia estadunidense, Mike Pompeo, declarou que os EUA pretendem processar a China para que ela pague as despesas do tratamento da doença pela sua omissão em enviar dados à OMS (sic). Um verdadeiro absurdo.

Mas, pior que isso, desde o mês passado, os Estados Unidos suspenderam o pagamento de sua cota-parte à OMS. De um orçamento anual de quatro bilhões de dólares, os EUA são responsáveis por 10% desse valor, ou seja, mais de 440 milhões de dólares. Isso poderá acarretar muitos problemas no funcionamento da Organização. Nestes últimos dias, além de a China seguir contribuindo com sua cota-parte e colaborando integralmente com a OMS, o presidente chinês anunciou esta semana que o seu país doará à OMS um valor a mais de dois bilhões de dólares, praticamente metade de todo o seu orçamento, que poderá pular para 6,5 bilhões este ano para combater a epidemia em melhores condições.

Conclusões preliminares

Sabemos que o mundo ainda não concluiu a sua transição entre a unipolaridade e a multipolaridade desejada pela maioria dos países. Estamos bem avançados nesse caminho, de meu ponto de vista. É visível o desespero estadunidense com o crescimento do protagonismo chinês em todos os aspectos que acima enumerei. Por certo faltaram ainda vários outros fatores. Mas, não há mais dúvidas disso, ainda que não seja objetivo chinês ser uma potência hegemonista. Não se trata de trocar um país hegemônico por outro.

A China vem expressando com firmeza o seu desejo da multipolaridade, mas principalmente um mundo de paz, solidariedade e desenvolvimento. No momento que escrevo, apenas o primeiro dia transcorreu da Plenária Consultiva do Parlamento Chinês, que teve sua abertura realizada pelo primeiro Ministro Li Keqiang.

A superioridade chinesa já se faz notar em vários aspectos, principalmente no de tecnologia (veja que o sistema 5G chinês é o mais moderno do mundo, assim como seus celulares realizam muito mais que os da Samsung e da Apple, pela metade do preço). A empresa de telefonia Huawei já a segunda no mundo, atrás apenas da coreana Samsung (a Apple caiu para terceiro lugar). Não por acaso, em maio de 2019, a Google, acatando as sanções impostas unilateralmente pelos EUA à China e com medo de sofrer punições, suspendeu a licença de uso de seu sistema operacional Androide para a empresa Huawei. Desde a semana passada, os EUA vêm proibindo empresas de tecnologia estadunidenses  de fornecerem chips para empresas chinesas.

Vamos presenciar ainda uma grande guerra comercial, sempre com a esperança de que ela não se transforme em uma guerra de outras formas. A verborragia estadunidense será como areia que se espalham ao vento. Não abalará a grande China, que seguirá o seu caminho traçado desde 1972, quando Deng Xiaoping formulou o que se chama “As Quatro Modernizações”: 1. Defesa do Socialismo (com as peculiaridades chinesas); 2. Defesa do Partido Comunista Chinês; 3. Defesa da ditadura democrática do povo chinês e 4. Defesa do pensamento marxista-leninista e de Mao Zedong.

Será sob essas quatro orientações fundamentais – que aliás a esquerda marxista deveria se debruçar em estudar – que a China superará em poucos anos o PIB per capita em dólar dos EUA (porque o PIB medido em poder de paridade de compra ela já ultrapassou esse país faz tempo), vindo a ser a maior potência econômica mundial, relembrando o que ela já foi em meados do século XIX, quando seu PIB sozinho era maior que a soma do PIB do resto do mundo da época.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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Um comentario para "Por que os EUA vêm agredindo a China nos últimos dias?"

  1. Ana Gordon disse:

    Descobri vocês há pouco tempo e gosto muito.
    Professor Mirhan por favor pode me indicar um livro, de preferê cia em pirtuguês ou francês, sobre a China no fibal do sécumo XX (após reatar relações com os EUA) e início do século XXI. A terceira opção de lingua é o espanhol e aúltima o inglês. Muito obrigada. Se puder pode .e dar maiores informações sobre a Fundação Maurício Grabois? Obrigadíssima.
    Abaixo meus dados

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