“Almoço em Agosto”: dos males o que dá pra rir

Com situações que lembram as velhas comédias italianas, diretor Gianni di Gregório faz rir ao mostrar como uma decadente família classe média contorna seus problemas financeiros hospedando três senhoras em plena terceira idade.

Desde “A Festa de Babete” não se via uma celebração à vida como em “Almoço em Agosto”, do italiano Gianni di Gregório. Gabriel Axel, em seu filme, leva Babete a uma ilha dinamarquesa, onde ela passa a remediar os conflitos locais através de deliciosos e complicados pratos de sua culinária particular. Gregório, por seu turno, mostra como o cinquentão Gianni se transforma no cozinheiro de três senhoras da terceira idade, num instante delicado de sua vida. E as faz se apaixonar pelos pratos que ele lhes serve, enquanto tenta contornar, com a mãe, Valéria, as dificuldades criadas pela presença delas. Ambos se acomodam à nova situação de membros de uma classe média italiana em franca decadência, sem chance alguma de dispensá-las, pois correm o risco de penhora do que lhes resta: o apartamento onde moram por uma vida inteira.

Situações iguais a estas não são muito afeitas à comédia, mas se trata justamente de uma grande comédia de costume, daquelas só que os italianos sabiam fazer em seus áureos. De Pietro Germi a Mário Monicelli, passando por Dino Risi e Vittório de Sica. Cada um deles à sua maneira criou figuras típicas da sociedade italiana. Uma delas impagável: a mamma. Possessiva, dominadora, lutadora e, sem dúvida, de bom coração. E com uma fieira de filhos, acomodados em apertados cômodos, principalmente no pós-guerra. Gregório, herdeiro legítimo desse cinema de costumes, começa por reverter a situação, com uma mãe, Valéria, que dialoga, se exprime cheia de charme e se mostra vaidosa e ciente de que houve um dia em que as coisas foram melhores, e não há, portanto, do que reclamar. No que ela se assemelha, em muito, às mammas que a precederam. Ela, em determinados instantes, sofre recaídas das quais se ergue tomada de um calor humano invejável.

As três “hóspedes” não vivem no passado

Com estes ingredientes temos o quadro completo das situações expostas com vivacidade por Gregório, em “Almoço em Agosto”. Dentre eles, a amizade, a troca de favores, uso do outro para tirar vantagem, recheados com as travessuras de três velhinhas que não vivem do passado. Cada uma delas tem um problema particular, exigindo atenção redobrada de Gianni. E, mesmo assim, teima em manter os antigos hábitos, sob pena de sofrer uma recaída e a culpa recair nas costas do pobre “anfitrião”. Ele então se torna “cuidador de vizinhas”, devendo estar atento aos horários de tomar remédio, o que pode ou não comer, melhor local para dormir. Termina por se envolver de tal forma que seu apartamento se transforma numa pousada, em que elas ditam o que querem ou não comer. Até mesmo discutem com ele o tempero e a forma de chegar ao ponto dos pratos a elas servidos. O molho destes sugestivos pratos não é propriamente o molho italiano em si, mas a estruturação das cenas. Gregório encena-as usando o burlesco, a sátira, a malícia e, sobretudo, o bom humor.

Numa das sequências mais hilariantes de “Almoço em Agosto”, Marina (Marina Caccioti), a mais vaidosa de suas “hóspedes”, obriga Gianni a vigiá-la, como se tratasse de uma adolescente. Os argumentos por ele usados e a manha de que ela lança mão mostram o jogo de atrações. Existe algo para além da simples recusa de ela retornar ao apartamento; Marina quer aproveitar o que a noite lhe oferece. Ainda se sente viva e disposta à aventura. Eles emendam uma sucessão de negativas e oferecimentos num bar e a sequência, por assim dizer, só acaba no apartamento. Os entretantos, elipses e recusas, ficam para a imaginação do espectador que ainda não assistiu ao filme. Estabelece-se uma correria entre uma sequência e outra, uma cena e outra, marcada pelos comentários musicais da dupla Ratchev e Corratello. Eles são usados não para ressaltar a ação, mas para chamar atenção para suas consequências, como nas antigas comédiaspastelão. Ressaltadas pelos constantes atropelos de Gianni, feito pelo próprio diretor, com escancaradas risadas.

Crise financeira é deixada para trás

Nesta altura, qualquer emergência do que impulsionou a trama ficou para trás. A possibilidade da miséria, do despejo, cedeu lugar às relações que vão se estabelecendo entre Gianni e Valéria (Valéria De Franciscis) e as “três hóspedes”: Maria, Marina e Grazia. Eles começam a formar um grupo de pessoas cujas carências são supridas por elas mesmas – uma escora na outra e vai adiante. Mesmo porque nenhuma delas sabe da penúria e do endividamento da família que as abriga. Estão ali para passar o fim-de-semana, enquanto seus filhos, já maduros, gozam as férias no verão italiano. Gianni, para não frustrá-las, corre atrás dos credores e dos amigos, sempre pensando que poderia ser pior. A cidade, Roma, está vazia. Raros carros e raras pessoas circulam pelas ruas. O que demonstra que Gianni está entregue à sua própria sorte. Então, é com o aperto do personagem, no caso Gianni, que Gregório cria suas situações de riso. Principalmente, quando tem de elaborar o cardápio e, de repente, falta o ingrediente principal. E as “três hóspedes” insistem em ter seu almoço típico de final de verão italiano.

Nestes instantes entra a mamma, Valéria, com sua fala mansa, depois de ter se recusado a fazer sala às suas “hóspedes”. Não para ajudá-lo a sair da encrenca em que o meteram, sim para não aumentar-lhe as dificuldades. É quando ele, Gianni, usa a criatividade e surgem os deliciosos pratos italianos. A pasta (macarrão), o molho, o vinho e a forma como a mesa são postos segue o típico ritual da refeição coletiva. E elas se sentam para degustar com prazer o que ele lhes preparou. Nesta altura o espectador, tomado pelas envolventes sequências, não se dá ao trabalho de verificar que Gregório lhe conta a história do reposicionamento da mamma, Valéria. Ela, de subalterna, que não queria tomar conhecimento do que se passava, assume outra posição: a de fazer da presença das “hóspedes” uma maneira de integrar-se ao grupo que se formou e precisa de uma liderança. Tão sutil quanto se lhe apresenta.

Espectador esquece da situação de Gianni

É como se Gregório estruturasse uma gag (piada) de longa duração, com os comentários musicais de Ratchev e Carratello, e só o encerasse quando chegasse a esta sequência. E permitisse ao próprio diretor/intérprete soltar, afinal, uma sonora gargalhada. O que ele faz, fechando a gag. E dissesse, com os novos incentivos recebidos dos filhos das “hóspedes”, que aquilo não é nada. O espectador, enfim, atraído que está para aquele redemoinho de situações cômicas, passa também a rir da miséria de Gianni – “a gente vai levando, parece dizer ele”. Mas ele, o espectador, só irá se dar conta da situação vivida por Gianni e Valéria fora do cinema: afinal, ele, Gianni, acabou por inverter a situação – aquilo que a princípio parecia ser uma chantagem, feita pelo condômino Marcelino (Marcello Ottolenghio) e o médico Alfonso (Alfonso Santagata) acaba por se transformar num bom negócio.

Numa época de comédias juvenis, cheias de clichês, que levam o adolescente – e também os adultos – a se sentirem manipulados, para dizer o mínimo, “Almoço em Agosto” recompensa o espectador. Ao redor da mesa, o grupo de senhoras, readquire a vontade de viver, de fazer parte de um grupo em seus próprios termos, ainda que à custa da chantagem de seus filhos. Como Babete, que reagrupa os moradores da ilha em torno de uma mesa, Gianni também o faz. E a vida flui com comentários, jogos de cartas, comentários picantes e uma saudável união, em que as rusgas e as imperfeições humanas foram deixadas de lado, pelo menos naquele período de verão. O virá depois, a gargalhada de Gianni, numa das melhores sequências do filme, respondem melhor do que qualquer análise: a vida continua. Gianni di Gregório o consegue em filme simples, de apenas 75 minutos de duração. Estruturado em planos sequências (cenas sem cortes), encenados em estreitos espaços, com os personagens ocupando, cada um, o seu, tendo raras cenas exteriores. Portanto uma economia de meios de toda a sorte – inclusive das atrizes com seus rostos marcados, corpos que pouco se movem, mas que transmitem o mínimo para provocar no espectador o riso que brota das situações por elas vividas.

Valéria termina por assumir a situação

Cabe, sem dúvida, a classificação de autor para Gregório, e ele já foi recompensado com o Leão de Ouro de Melhor Filme de Estréia no Festival de Veneza de 2008. Seu “Almoço em Agosto”, pela economia de meios se equivale ao de Adrián Biniez, em seu ótimo “Gigante”. E com muita criatividade. Difícil esquecer o diálogo de Gianni com Valéria, quando ela, enfim, resolve assumir a situação que até aquele momento ignorava. Ela fala baixo, com convicção, mais para si do que para ele, o filho, que não ficava bem, ela se manter longe das “hóspedes”. Talvez a vergonha a impedisse de assumir sua situação e o filho o estivesse fazendo para ela. Prepara-se com esmero de quem um dia foi senhora de seus ombros e passos. É como se retirasse das costas o peso e dissesse: “Se a situação é esta, por que não vivê-la civilizadamente?”. De retraída e ressentida, ela passa a comandar a ação, para satisfação do filho e dos aproveitadores, que àquela altura, também eram senhores da situação.
É isto. Uma comédia de costumes para rir e lamentar que toda uma cinematografia se foi. Os ingredientes, como nos pratos preparados por Gianni, continuam lá, com novos rostos, outras situações e tramas bem elaboradas. Em dado momento em “Almoço em Agosto” o espectador pode rir das carências de Marina, das estripulias de Grazia (Grazia Cesarini Sforza) e da meiguice de Valéria – e perguntar se Gianni está se divertindo mesmo com tudo aquilo ou se é um tremendo cínico. Quem for dar uma olhada na pousada de Gianni pode sair de lá com a resposta. E bom filme!

“Almoço em Agosto” (“Prazo di Ferragosto”). Comédia. Itália. 2008. 75 minutos. Roteiro: Gianni di Gregório, baseado em idéia sua e de Simone Riccardini. Música: Ratchev e Carratello. Direção: Gianni di Gregório Elenco: Gianni di Gregório, Valéria di Franciscis, Maria Cali, Marina Caccioti, Grazia Cesarini Sforza, Marcello Ottolenghiu, Alfonso Santagata.

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