As maravilhas da tecnologia informática e seus conhecidos malefícios

.

Cena do filme "Sonhos", de Akira Kurosawa.

Passaram 30 anos sobre a apresentação de «Yume» (Sonhos) do cineasta Akira Kurosawa, à margem da competição, no Festival de Cannes de 1990. A memória dos 8 sonhos de Kurosawa impõe-se nestes tempos de pandemia, guiando a reflexão em torno das questões tecnológicas. Kurosawa louva a vida, perante a incerteza de uma humanidade que caminha na senda do conflito nuclear, evocando figuras míticas da cultura nipónica: «Um raio de sol através da chuva»; «O jardim dos pessegueiros»; «A tempestade»; «O túnel»; «Corvos»; «Monte Fuji em chamas»; «O demónio que chora»; e, a finalizar, «O vilarejo dos moinhos». Neste último quadro, um ancião explica ao viajante a decisão tomada há muito tempo pela aldeia, de recusar a influência poluente da tecnologia moderna, retornando a modos de vida arcaicos, em busca de uma sociedade mais limpa e feliz. O quadro mostra uma procissão fúnebre, o funeral de uma mulher. Mas, ao invés de um luto carregado, a aldeia escolhe celebrar antes a existência e o final de uma vida feliz.

Tecnologia informática na pandemia

A pandemia obriga ao confinamento, o confinamento ao uso intensivo das redes sociais e dos meios de comunicação informatizados. Milhões de crianças passam a realizar as aprendizagens escolares com recurso às tecnologias cibernéticas. A internet dá mais um passo no sentido do cobrimento das múltiplas dimensões da vida humana. Dos objetos tecnológicos (computadores, tablets, smartphones, routers, etc.) com que se concretiza a internet enquanto ferramenta de comunicação humana, passamos gradualmente para a «internet das coisas» – das coisas transformadas em entes comunicantes (os veículos, os semáforos, os mais variados aparelhos domésticos, da televisão à simples lâmpada de iluminação).

A tecnologia informática cobre paulatinamente todos os espaços, gestos e hábitos humanos, dominando o modo de realização das diversas atividades, mesmo daquelas que sempre se realizaram, positiva e plenamente, sem o recurso a tal tecnologia. A internet torna-se omnipresente e procura ser omnisciente (traços que merecem reflexão de todos, presentes nas utopias em que se fundam as diversas formulações ideológicas, nomeadamente do foro religioso).

Vivendo num casulo electromagnético

Um novo passo da tecnologia informática de uso doméstico aparece com a proliferação de soluções de «rede wi-fi mesh». Ou seja, de aparelhos que produzem a sincronização de «routers» (aquelas caixinhas que distribuem o sinal da internet sem fios em nossas casas), aparelhos que já vêm dotados de capacidades de fluxo de dados elevados, proporcionando a passagem do comum padrão 2.4G para o 5G (ou seja, passar de emissões de frequência radio da banda dos 2,4 GHz para os 5.1 a 5.8 GHz) e, nessa passagem, ao recurso a ondas cada vez mais curtas (os aparelhos de cozinha por micro-ondas utilizam frequentemente 2,54 GHz). E, para reforçar a presença do sinal de rede, a rede «wi-fi mesh» pode ainda conectar-se à fiação da rede elétrica doméstica, utilizando-a como se fosse uma antena de reforço da presença do sinal «wi-fi» (ultrapassando assim as barreiras físicas, como sejam os pisos e as paredes de betão). Estamos, assim, prontos para a omnipresença da radiação eletromagnética nas nossas vidas. Mas, … isso será bom?

Referimos já o uso dessa forma de energia para cozinhar alimentos (os fornos microondas). E, conhecemos também uma variedade de artefactos bélicos, baseados nas microondas, designados genericamente por AED (armas de energia dirigida). A questão foca-se no termo que qualifica este tipo de energia – a radiação – e no seu uso indiscriminado dentro do espaço doméstico. As redes «wi-fi mesh» transformam a nossa casa literalmente numa antena de radiação eletromagnética virada para dentro, que nos envolve como um casulo.

Decorrente do confinamento e da prática do teletrabalho, acabamos por transformar as nossas próprias casas em centros produtores de radiação, vivendo literalmente dentro deles. Enquanto tal resultar de uma opção individual, do modo de fruição lúdica das tecnologias, estaremos num âmbito restrito do problema, na sua esfera privada. Mas quando essa é a forma de concretização da «escolaridade obrigatória» à qual são remetidos milhões de jovens, passamos à esfera pública e à necessidade de responsabilização dos decisores políticos.

A 5.ª geração de sistemas sem fios – o 5G

Assistimos, nos meses percorridos pela pandemia, a situações de ataques a antenas de transmissão 5G e à promoção de teoria destas como promotoras do surgimento do novo coronavírus. Numa reacção de feição obscurantista, as antenas que foram destruídas ou incendiadas transportavam também o sinal de comunicação das outras bandas de frequência (2G, 3G, 4G), utilizadas para a coordenação dos esforços no enfrentar da pandemia. E, uma parcela da argumentação tratou de focar, como alvo da crítica, a empresa chinesa Huawei, uma das mais fortes empresas a nível mundial neste ramo de atividade, envolvida numa verdadeira guerra comercial polarizada entre a China e os EUA, embora haja outras empresas e outros países também a considerar.

A guerra movida pelo governo dos EUA à Huawei tem como finalidade garantir o monopólio tecnológico – e, neste âmbito, a energia 5G da Huawei será tão nociva quanto a da Nokia, da Ericsson, da ZTE ou da Samsung.

O sistema 5G encontra-se já na fase de implantação comercial no Reino Unido, na Itália, na Espanha, na Alemanha, na Áustria, na Finlândia, na Roménia e na Estónia. Em Portugal, o sistema 5G encontra-se na fase de regulamentação. Pode ler-se no preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 7-A/2020, de 7 de fevereiro: «O 5G apresenta características que o tornam um poderoso instrumento da transição digital. A nova tecnologia de rede que agora emerge é a geração «gigabits», estimando-se que permita a transmissão mais rápida de um volume de dados muito maior (cem vezes superior), de forma praticamente instantânea (latência cinquenta vezes inferior), bem como a conexão de muitos mais dispositivos (um milhão de dispositivos por km2)».E, no art.° 13°, alínea c), que compete ao governo: «Desenvolver e publicitar estudos relativos ao eventual impacto do 5G na saúde pública com o objetivo de dotar a população de informação rigorosa sobre o assunto».

Não abona especialmente aos cuidados de saúde pública, num país que realiza conferências de imprensa diárias dedicadas à pandemia da Covid-19, verificar-se que o estudo do “eventual impacto do 5G na saúde pública” se deverá fazer com o objectivo de informar a população, mas em nada interferirá na decisão de se proceder à sua implantação no território nacional, na rede de ensino e de hospitais públicos.

Na senda das preocupações dominantes, o potencial económico do sistema 5G sobrepõe-se claramente a qualquer preocupação relativa à saúde pública. Para a conclusão ser outra, os estudos deveriam ser feitos antes de se tomar a decisão de se instalar aquele sistema (mas, neste como em muitos aspectos, Portugal segue diretrizes da União Europeia).

Não há ainda uma relação de causalidade comprovada entre o 5G e o surgir da Covid-19, mas esse dado – o não haver comprovação – não significa que tal não possa existir. Pode resultar de algo simples: não terem sido promovidos estudos nesse sentido (pelo menos, em Portugal). Mas, devemos acreditar que, em resultado da resolução citada, quando forem feitos os estudos pertinentes, seremos certamente informados disso (isto é, se os estudos forem realizados, não esquecendo a forte e direta vinculação estabelecida hoje entre o meio académico e o interesse as indústrias).

O paralelo com a Talidomina

Retrocedendo na história, em finais da década de 1950, uma empresa farmacêutica alemã comercializou um medicamento passível de venda sem receita médica, dadas as garantias de segurança afirmadas pelo fabricante, que provocavam malformações nos fetos, atingindo mais de 10 mil crianças. Depois de retirado dos mercados (primeiro, dos EUA, Inglaterra e Alemanha e, depois, de outros países), continuou a ser comercializado (com outro nome) no Brasil, tardando ainda uns anos em ser completamente retirado de circulação.

O comportamento da indústria farmacêutica alemã foi, comprovadamente e com condenações na justiça, criminosamente negligente. O paralelo coloca-se, desde logo, na afirmação de segurança do produto para o consumo: razões de mercado fizeram saltar etapas nos testes requeridos para a colocação no mercado de um determinado medicamento; o mesmo se aprestam a fazer governos e indústrias farmacêuticas em relação à vacina para a Covid-19 ou, como fez Donald Trump, acolitamente seguido por Bolsonaro, na promoção da cloroquina e da hidroxicloroquina como medicamento adequado àquela doença, algo que a OMS contesta.

Mas um outro paralelo foi apontado, já há alguns anos, em relação à tecnologia 5G e a Talidomina: a possibilidade de, pela potência, cumprimento de onda e frequência, a radiação electromagnética produzida pelos sistemas «wi-fi» serem potencialmente prejudiciais à saúde humana (e animal, em geral), podendo interagir com o meio ambiente (inclusivamente, no comportamento dos processos virais).

Evitando basear esta reflexão em fontes sujeitas a grande polémica, envoltas na bruma das chamadas “teorias da conspiração” (como as denúncias protagonizadas por Berrie Trowers – investigador que sugere o paralelismo entre a tecnologia 5G e a Talidomina – ou o livro de Severac Claire, A guerra secreta contra os povos, onde as questões aqui afloradas são objecto de maior aprofundamento), procuremos o olhar de uma fonte mais neutral (face às polémicas referidas).

Segundo o INCA (Instituto Nacional do Câncer), do ministério da saúde do governo federal do Brasil: «A radiação não ionizante é uma modalidade de radiação de baixa frequência e baixa energia, também denominada de campo eletromagnético, que se propaga através de uma onda eletromagnética, constituída por um campo elétrico e um campo magnético, podendo ser provenientes de fontes naturais e não naturais. Os dois principais subtipos de campos eletromagnéticos são:

  • Eletromagnéticos de frequência extremamente baixa: Ondas de rádio – oriundos da rede elétrica e dos equipamentos elétricos e eletrônico.
  • Radiofrequência/micro-ondas: Telefones celulares e sem fio, antenas de telefonia celular instaladas nos aparelhos móveis e nas torres, radares e transmissões de rádio e TV, luz elétrica, torres de transmissão e distribuição elétrica, fiação elétrica em construções, equipamentos que emitem radiação infravermelha, redes Wi-Fi.

(…) A exposição aos campos não ionizantes não são um fenômeno recente, embora a exposição não natural tenha aumentado no século XXI em função das demandas por eletricidade, aprimoramento tecnológico e mudanças no comportamento social. Quanto maior a intensidade do campo magnético externo maior a circulação de corrente no interior do corpo humano. Tanto os campos elétricos como magnéticos podem, quando suficientemente intensos, produzir estimulação em nervos e músculos ou afetar outros processos biológicos. As evidências sugerem que a exposição crônica à radiação não ionizante de baixa frequência e fontes de campos eletromagnéticos de frequência extremamente baixa pode aumentar o risco de câncer em crianças e adultos»[1].

O texto é de teor didático e aborda os mesmos problemas atrás referidos como sujeitos à pecha de “teoria da conspiração”: a potencial influência negativa para a saúde decorrente da exposição à radiação eletromagnética. Problemas de uma temática conhecida e que, pelo teor da resolução do governo português já referida, não justificaram em Portugal maior investigação ou cuidado (antes de se decidir pela implantação do sistema 5G no território, nas escolas, nos hospitais, nas casas que hoje se querem “inteligentes”).

Ecologia e ideologia

Pelas boas e pelas más razões, a «internet das coisas» deixou de ser um tema de interesse exclusivo de especialistas e passou a integrar o cardápio das temáticas correntes. A discussão destas questões terá que libertar-se, é certo, da atribuição preconcebida da etiqueta “teoria da conspiração” e ser assumida pela sociedade civil nas suas múltiplas dimensões (filosófica, científica, ética e técnica, desejavelmente por esta ordem de prioridades).

Foi a inversão das prioridades e o abandono do critério ético permitiram a existência da Talidomina. E, o que acontecerá com as tecnologias cibernéticas? Continuaremos indefinidamente a fruir ingenuamente a tecnologia como valor autónomo, desligado das demais esferas da vida, chegando mesmo a sobrepo-lo ao critério prioritário do respeito à vida humana?

Epílogo

O nono sonho de Kurosawa não chegou a ser filmado. Por razões orçamentais, a celebração do fim do pesadelo nuclear não integrou «Yume». Nem aquele objectivo foi realmente atingido, como demonstram o desenvolvimento armamentista das grandes potências, seja a nível nuclear, seja pelo recurso a novas armas onde os sistemas informáticos (e a chamada «inteligência artificial») são, cada vez mais, determinantes e onde a velocidade de comunicação em rede desempenha um papel crucial.


[1] https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/radiacoes/radiacoes-nao-ionizantes

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor

Um comentario para "As maravilhas da tecnologia informática e seus conhecidos malefícios"

  1. Jose Calazans Duarte disse:

    Excelente artigo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *