Até breve, Lili

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O Marajá, misto de boteco e restaurante, na Martins Fontes, centro de São Paulo, está sempre repleto de fregueses. Todos falam muito alto, em acirrada disputa com o som dos aparelhos de TV e, em algumas noites, com a esforçada cantora de blues e MPB e o discreto violonista.  Lugar ideal para extravasar o que vem à telha e também, por que não?, compartilhar segredos. A Babel impede que o pessoal da mesa ao lado escute o que você diz a menos de um metro de distância.


 


 


Nossa pretensão é bem mais modesta nesta noite de sábado. E o tempo de permanência forçosamente encurtado pelo aviso da garçonete Marlene, uma pernambucana de Lajedo: – “Às 22 horas vai começar a dedetização, isso acontece de quinze em quinze dias.” – Tudo bem, conterrânea, temos meia hora para um chope e um contrafilé com legumes a dividir entre esse seu amigo e Alanir Cardoso, companheiro dirigente do PCdoB.


 


 


Enquanto desfrutamos nossos exíguos trinta minutos, observamos a mulher alva, cabelos longos artificialmente aloirados e olhar vago, numa mesinha pequena, só – melancolicamente só na noite cinzenta e fria.  O rosto parece precocemente enrugado para os seus prováveis trinta anos. Gesticula a esmo, conversando consigo mesma.


 


 


Não é novidade pessoas falarem sozinhas, hábito universal que se vê em grandes e médias cidades do mundo. Mas que dói, dói, e muito, ver alguém mergulhado no próprio isolamento, sem ter com quem compartilhar suas angústias, esperanças, tristezas e eventuais alegrias.


 


 


A mulher branca, loira e triste continua gesticulando, enquanto traça um filé com fritas e um suco de laranja.


 


 


– Impressionante, Alanir, aquela ali conversa sozinha…


 


 


– No Parque da Jaqueira também é assim – diz ele, falando de suas caminhadas matinais no Recife.


 


 


– Mesmo?


 


 


– Sim. Outro dia ouvi uma senhora dizer para outra: “E você estranha que eu fale sozinha? Pois eu venho aqui para conversar comigo mesma!”


 


 


As mesas vão sendo recolhidas na medida em que os fregueses, pressionados pela inadiável dedetização, pedem a conta e se retiram. A loira solitária parece familiar, pois a garçonete a convida a mudar de mesa: – “Vem pra cá, Lili, vou deixar essa pro fim.”


 


 


– Ah, você é Lili, muito prazer – digo para mim mesmo em silenciosa solidariedade. – Pois saiba, Lili, que o Comitê Central do PCdoB se reúne aqui pertinho, no Hotel Braston, quem sabe breve possamos nos ver novamente. Prometo que da próxima vez você não conversará sozinha, darei um jeito de puxar assunto e lhe tirar dessa deprimente solidão. Posso até explicar que o meu partido luta pela emancipação dos que vivem do próprio trabalho, como você, e sonha com um mundo em que prevaleçam a harmonia e a solidariedade entre as pessoas, onde não haja mais gente falando sozinha nos botecos, nas ruas e nos parques.


 


Até breve, Lili.

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