“Babel”: Verdades pela metade

Candidato a sete Oscar, filme do diretor mexicano Alejandro Gonzaléz Iñárritu mostra paranóia americana em torno do terrorismo e alienação da juventude japonesa

A Torre Babel era aquela construção monumental, semelhante aos arranha-céus de hoje, habitado por dezenas de povos em que a tônica era a multiplicidade de línguas, que, na verdade, representava a cisão da sociedade antiga e sua passagem para a construção de diversos grupos sociais. Pelo menos era assim que ela era – ou ainda é – mostrada nas imagens que ilustram as passagens da Bíblia, que falam sobre a perdição da humanidade, entregue ao egoísmo, ao ódio e ao pecado. Na verdade uma Era findava ali, outra se iniciava, até chegar aos tempos atuais, em que o mosaico de povos, línguas e costumes permanecem. Mas que, pela ação da circulação de mercadorias e apropriação da riqueza produzida pelo trabalho, foi tornada una, pela ação do imperialismo cruzado, sob o comando de uma única superpotência: os EUA.


 



              
Faz sentido iniciar a análise de um filme, “Babel”, do mexicano Alejandro González Iñárritu, candidato a sete estatuetas, no Oscar de 2007(1), com uma digressão desta natureza. Iñárritu e seu roteirista, Guilhermo Arriaga, traçam um painel das relações entre países díspares, como Marrocos, Estados Unidos, Japão e México, a partir de um fato banal: o arbitrário tiro de fuzil dado pelo adolescente Ahmed, pastor de cabras, atinge a turista americana Susan (Cate Blanchett), que viaja de ônibus com marido Richard (Brad Pitt), nas desérticas montanhas marroquinas. Este ato desencadeia uma sucessão de fatos, que, pela visão da dupla Iñárritu/Arriaga, mostra que no “mundo globalizado” uma simples ação pode impulsionar outras de conseqüências radicais. Interligados, os fatos irão justificar sua opção e mostrar que nada está dissociado, muito menos um disparo banal, feito quase ao acaso.


 



             
Tiro arbitrário detona análise globalizante


             


 


O ponto de partida, com poderosas imagens, tomadas no agreste marroquino, assemelha-se ao disparo de uma bala de fuzil que percorre longo espaço até atingir a testa de um africano, em seu continente, no filme “O Senhor das Armas”, do americano Andrew Nicol. O efeito diz muito mais sobre as conseqüências da produção e vendas desenfreadas de armas do que o tiro do garoto, em “Babel”. Afinal, armas e balas são produtos do complexo industrial-militar das principais potências do planeta. E sem metáforas e referências bíblicas, falam duas únicas línguas: a do lucro e da morte. Não há meio termo. A dupla Añárritu/Arriaga, no entanto, monta uma odisséia para levantar os problemas gerados por um fuzil em diferentes países, sem atentar para a banalidade de seu ponto de partida.



              


Se o disparo desencadeia diversos fatos, estes ganham autonomia ao acionar mecanismos econômicos, sociais, psicológicos  e políticos. O filme, então, se bifurca em quatro, dois no continente americano, um na Ásia e outro na África. O que se desenrola no Japão destoa dos demais, pois a dupla Añárritu/Arriaga debruça-se aqui sobre a alienação da juventude burguesa nipônica. As quatro histórias têm, assim, em comum apenas o ato detonador da ação, não a relação entre si pela estrutura econômica semelhante no planeta, a partir da forma de exploração, que é, na verdade, o que as une. Na primeira história, a que impulsiona as demais, temos o pequeno sitiante, dono de cabras, com sua família, que, devido à presença de um predador, adquire o fuzil de seu amigo que se encontra em situação econômica difícil.


 


                 


EUA vêem o disparo como ato terrorista


                 


Trata-se de uma arma poderosa, que atinge o alvo a uma distância de três quilômetros. Esta, colocada nas mãos de dois adolescentes, para evitar que o predador dizime seu rebanho, revela que eles não estavam preparados para manipular uma arma de alta tecnologia. Seu ato irá ser contextualizado pelas autoridades norte-americanas como parte das ações terroristas, que buscam atingir cidadãos americanos em que país estiver, mesmo em férias. A paranóia do terror, símbolo maior da Era Bush, predomina sob a banalidade do fato, embora provoque vítimas inocentes. A dupla Añárritu/Arriaga como que indaga: e se a poderosa arma cair em mãos inábeis ou de crianças, como realmente ocorreu? Quais serão as conseqüências?
                 


 


A primeira delas, que eles evidenciam em seu filme é: os EUA afirmarem e reafirmarem e difundirem que se tratou, na verdade, de um ato terrorista contra cidadãos americanos em viagem ao exterior, ainda mais tendo ocorrido num país árabe muçulmano, o Marrocos. Então, chega-se ao segundo segmento, o da conseqüência do disparo, que reverbera a milhares de quilômetros de distância na babá mexicana Amélia (Adriana Barraza), que toma conta dos filhos da vítima, nos EUA. Há forte vinculação emocional e quase filial entre as duas crianças e ela e, devido a impossibilidades de encontrar quem delas tome conta, terminam atravessando a fronteira mexicana/americana para participarem do casamento de seu filho. Têm-se, portanto, duas línguas que não se ajustam, nas circunstâncias atuais: o inglês e o espanhol.


                 


Muro que vai separar México/EUA é cerca nazista


                


E mais do que isto, pelas relações de exploração estabelecidas legalmente, via Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), entre os governos americano e mexicano, os descendentes dos aztecas se transformaram em súditos da potência imperante, sem direito de cruzar a fronteira. São indesejáveis e, para evitar que vivam e trabalhem nos estados fronteiriços, o governo Bush apressa a construção de um muro, nos moldes das cercas nazistas. Amélia é uma delas, uma “ilegal”, nome dado aos mexicanos que entram nos Estados Unidos sem passaporte ou documento legal. A dupla Añárritu/Arriaga cria, com este quadro, uma situação limite, que transforma a visita de Amélia em pesadelo, pondo em risco sua vida e das crianças. Com poucas cenas percebe-se a extensão do absurdo que é sua situação e a de seu país.


 
                     


Com uma história estreitamente ligada à dos EUA, que lhe tomou vastas terras em meados do século XIX (guerra de 1846 a 1848), onde hoje são os Estados da Califórnia, Novo México e Texas, o México subscreveu o Nafta, mas não tem o mesmo status que o Canadá. A imigração de seus habitantes é dificultada por leis e ações que os tornam párias em terras americanas. Ali são perseguidos e devolvidos a seu país, caso de Amélia, depois de passar por momentos de terror, nas mãos da polícia americana de fronteira. A globalização, neste caso, e claro também nos demais, tem sua face seletiva, de atrair mão-de-obra barata, não qualificada, para suprir a demanda não encampada pelos trabalhadores norte-americanos. A contradição dessa prática começa pela propaganda, atestada numa cena em que o filho de Amélia diz que, se sua vida não der certo no México, ela acorrerá aos EUA, visto como paraíso. E termina num canto qualquer de uma residência ou empresa ianque, onde o mexicano – e qualquer imigrante terceiro-mundista –  trabalha por salários inferiores ao do operário americano, permitindo a seu empregador o conforto e a expansão de seu lucro.


 


                      
Polícia de fronteira arrasta “ilegal” pelo deserto


                      


O grave – e que não está no filme – é que a burguesia mexicana, que sustentou o antigo PRI, e agora as forças conservadoras no poder, mantêm-se no comando graças à subserviência aos interesses dos EUA. E, desta forma, furta-se à execução de um projeto de soberania e independência mexicana que beneficie os trabalhadores de seu país. Amélia é vítima deste processo, por mais que debite a si e a seu sobrinho, Santiago (Gael Garcia Bernal), o insucesso de sua tentativa de permanecer nos EUA. A dupla Añárritu/Arriaga, por razões diferentes, deixa-a entregue à sua própria sorte, pois sua empreitada de regressar com as crianças, termina por reforçar a perseguição. O que significa dizer aos que pretendem tentar o mesmo caminho: veja o que aconteceu a Améilia, se você for, pode lhe acontecer o mesmo. Ou seja, reforça a idéia de que os gringos são severos e perseguidores, porém, você não pode entrar no país dele pelas vias ilegais, é melhor que obtenha um visto. 


 
                    


A questão, no entanto, não é de visto, mas de relações econômicas, de aproveitamento de mão-de-obra barata, para sustentar a economia americana. Este é, também, o papel exercido pelo México nesta etapa histórica: a de exportador de força de trabalho não qualificada – e não só esta -, sob égide do Nafta. E com o incentivo da burguesia que, como já levantado, é cúmplice desse processo. Não é diferente o papel dos países terceiro-mundistas, cujos trabalhadores são exportados nas mesmas circunstâncias. A agonia de Amélia em pleno deserto, arrastada pelos “federales” vale por mil análises. Ela entra em conflito com seus sonhos e suas perspectivas de melhoria de vida, pela ação de algo de que não tem a mínima idéia. A riqueza que percorre oceanos e ares não lhe chega senão através da tragédia. Uma visão que permeia todo o filme da dupla Iñárritu/Arriaga, onde não há espaço para alegria, a enlevação, a troca e a solidariedade.



                   


A solidariedade dos humildes, demonstrada pelo agente de turismo que ajuda Richard a encontrar assistência para Susan, é o único momento em que ambos se nivelam. Ambos se despem de qualquer veleidade a se mostrar superiores – Richard e Susan estão indefesos, em outro país, gostem ou não gostem. Ela, que teme usar a água e degustar o prato marroquino, acaba nas mãos de uma benzedeira e um veterinário, que fazem os primeiros socorros. Nos demais segmentos permeiam o pessimismo, a desconfiança, o medo de ver e entender o outro e, sobretudo, o desencanto entre povos que não se comunicam, tão só resistem para não naufragar in totum. É quando o título “Babel” adquire total sentido e o filme da dupla Iñárritu/Arriaga se revela político, por mais que o diretor não o aceite.



                 


Iñárrritu explica que seu “(…) filme não é político, mas não se pode negar que tudo que fazemos hoje é afetado pelo momento político: quando você pega um avião, quando viaja para os EUA, o medo está impregnado. E isso ocorre porque as fronteiras reais e as que criamos ideologicamente são terríveis. Não concordo, e preciso me expressas (1)”. E o faz não dando espaço aos personagens para escapar às armadilhas criadas pela superpotência imperante. Os outros povos são inimigos, assim são tratados, sejam os garotos marroquinos, tidos como terroristas, e Amélia, a mexicana, como “ilegal”. Não há como vê-la com simpatia ou benevolência, diante da violência praticada contra estes povos. Tampouco abre caminho para o otimismo, ainda que brechas existam para combater tal prática, ainda mais quando se trata de um país, presente hoje nos quatro continentes. Só que suas ações, centradas no neoliberalismo e na globalização, é vista como única e incontestável, quando na verdade não o são.


            


Alienação desnuda vazio da sociedade japonesa


            


É um pessimismo que abarca todo o quarto segmento, que é, sem meios termos, um curta-metragem dentro do filme. Se retirado do contexto de “Babel” terá vida própria, salvo pelos momentos que se refere ao disparo, ocorrido no Marrocos. Nele o que sobressai é a frustração da jovem surda-muda Chieko (Rinko Kikuchi), que luta todo o tempo para conquistar um parceiro. Soturna, deprê, ela usa suas armas femininas, algumas extremadas, para atraí-lo. Não consegue, dada à sua condição de deficiente auditiva, num meio em que se exige a perfeição. Necessita estar à altura das demais, disposta a mostrar-se alegre, aberta a experiências, muitas das quais regadas a alucinógenos, sexo grupal, que não a satisfaz. Sobressai nesta seqüência uma das melhores análises que o cinema apresentou da juventude hi-tech. Tem por característica estar sempre junta, em grandes grupos, em locais de grandes aglomerados, cercada por aparatos tecnológicos, muitas luzes, flashes, embalada por DJs, que fundem diversos ritmos que não se completam.



              


Estar no mesmo espaço, no entanto, não significa estar junta de fato. Não existe o instante da relação em si, da troca de impressões, de afagos, de carinho, apenas o embalo em altos decibéis, um atrás do outro, como se tudo tivesse de ser vivido naquele instante, naquele mesmo lugar. Então, é impossível parar para refletir; tudo é entrecortado, as palavras, os passos da dança, o tocar, que permanece por segundo. É o micro-relacionamento. Aquele que precisa terminar logo, num longo beijo, o ficar, sem se apegar – toda a vida, é bom repetir, tem de ser vivida num átimo. Essa rapidez do existir produz seres voltados para si, sem ligação com o entorno. É a relação pós-moderna, dominada pela tecnologia, desinteressada do futuro, pois o consumo é o eterno renovar, reciclar, multiplicar, sem sentido, senão para o balanço anual, que deve refletir o alto retorno do investimento.


 


              


Segmento japonês destoa dos demais


            


Sob este aspecto a vida de Chieko é exemplar, ela termina enredada numa procura doentia por afeto. O pai, Yasujiro (Kôje Yakusho), sempre às voltas com seus negócios, pouco tem tempo para ela; a mãe se foi, deixando-lhe como herança uma morte que ela reinventa a todo instante. Um personagem rico, cheio de nuances, que destoa do conjunto do filme, devido à esplêndida interpretação da jovem Rinko Kikuchi, desconhecida em seu próprio país. E apresenta a imagem de outro Japão, vazio, envolto em alta tecnologia. É como se a dupla Iñárrritu/Arriaga dissesse: esta é a face submersa da globalização. Uma conclusão que desconecta o segmento dos demais, mais entrelaçados. É mais intimista; voltado para questões psicológicas, sem perder sua ligação com a sociedade que a criou. E ajuda a dupla Iñárritu/Arriaga a escapar à conclusão de que o pai de Chieko está na base de todo o processo. Poderia ser o vilão, aquele que permitiu toda a tragédia, por não ter medido o gesto de agradecimento a seu guia de caça. O espectador espera que, inclusive, seja visto como o vilão da narrativa circular do diretor e do roteirista mexicanos.



             


Eles, porém, não estão interessados em punição ou uma conclusão que aponte culpados, como fez Andrew Nicol, em seu “O Senhor das Armas”, que conta a história real do russo Yuri Orlov, traficante de armas. Apenas mostram as pontas da gigantesca tragédia, como se ninguém tivesse culpa. As vítimas desse processo são os jovens pastores de cabras, a “babá ilegal” mexicana e a vítima americana de todo esse encadeado. Muito pouco para uma obra que pretendia falar sobre a globalização e mostrar suas feridas. Restou uma obra pessimista, sem as pontas que desencadeiam dores e mortes planeta afora. Fica nos rostos dos deserdados e em um dos acionadores do gatilho, que, no entanto, não é amolado, pelo contrário, é tratado como benesses pela polícia japonesa. As fortes imagens das quatro histórias, narradas com pulso firme por Iñárritu, destoam da premissa aleatória e do desfecho frágil. Só em alguns momentos, quando Richard, desesperado ante a demora para sua mulher, Susan, ser socorrida no Marrocos, impreca contra os marroquinos, é que a crítica aos EUA aparece com intensidade.


              


Arrogância norte-americana concentrada em personagem


              


O americano, classe média, surge como um “deus”, a quem todos devem atender a tempo e hora, ainda que esteja em um país estrangeiro e tenha de se submeter aos mesmos entraves que os cidadãos nativos. Toda a arrogância aflora, pouco importa que o dano tenha sido causado por eles mesmos ou por um de seus aliados. Não é, neste caso, o americano classe-média falando, sim o Império, cujos olhos, braços e pernas dominam todo o planeta. E que não quer, de forma alguma, saber dos fatos reais; tem sua própria explicação para o fato a partir de sua visão imperialista, unilateralista, de que tudo, mesmo o disparo alheatório de um pequeno pastor de cabras, é um ato terrorista que atenta contra sua soberania e sua condição de “Senhor Supremo do Planeta”.


 
                


Este é o instante em que a narrativa da dupla  Iñárritu/Arriaga destoa de filmes iguais a “Diamante de Sangue”, de Edward Zuick, que lança sobre os belgas e sul-africanos a culpa pela situação vivida pelos povos africanos. Esquece que, ao substitui-los na atualidade, os EUA se transformaram na única superpotência da atualidade. É pouco, para quem pretendia falar sobre a globalização de forma crítica. Isenta o empresário japonês ao substituir sua culpabilidade pela danação de sua filha. Enreda o espectador no circulo familiar, tão caro ao cinema americano, gerando empatia e, há um só tempo, o manipulando. Além disso, provoca o medo de que algum familiar seu venha a sofrer o mesmo que Susan. Em seu estilo picotado, lembrando as narrativas de Robert Altman, Iñárritu consegue, com “Babel”, seu intento. Toca a quem o assiste. Fica a dever um desfecho à altura de suas pretensões: dizer quem é, na verdade, o vilão da história. De forma alguma são os adolescentes marroquinos, sim quem fabricou, vendeu ou presenteou o camponês com a arma letal, ou seja, o empresário japonês e os fabricantes e comerciantes de armas.


 


 


“Babel”, EUA, drama, 2006, 142 minutos. Roteiro: Guilhermo Arriaga. Direção: Alejandro González Iñárritu. Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael Garcia Bernal, Rinko Kikuchi, Adriana Barraza, Kôji Yakusho.


 


Notas


 


(1) Indicações de “Babel” ao Oscar: filme, diretor, atrizes coadjuvantes (Adriana Barraza e Rinko Kikuchi), roteiro original, edição e trilha-sonora.
(2) Raphael Santos, “Entrevista com o diretor de “Babel”, Alejandro Iñárritu”, Notícias, CCR News, Folha de São Paulo, 31/07/2006.


(*) Prêmio: Melhor Diretor Festival de Cannes 2006.

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