“Chega de Saudade”: Sonhos Amargos
Filme da brasileira Laís Bodanzky se fixa num baile de salão para recordar, com casais de meia e terceira-idade, as agruras do tempo e o que restou de seus sonhos na noite paulistana
Publicado 11/04/2008 19:02
É sintomático que no final de “Chega de Saudade”, da brasileira Laís Bodanzky, se tenha a sensação de que algo de si ficou para trás. Não no cinema, claro, mas ao longo da vida, os sentimentos se foram, assim como as pessoas com as quais se compartilhou parte dela e os anos. Os anos que pegam a todos pelos cabelos brancos, os amigos que se foram e as mulheres ou homens a que se amou. Nenhuma vontade há para se dançar, apenas refletir sobre como o tempo é mordaz, cínico e cruel. Vê-se pelos traços das mulheres e dos homens de meia idade que perambulam pelo salão de dança e, principalmente, pela nostalgia que resvala no casal de terceira-idade, no qual se concentra grande parte da ação do filme. Há nisso, também, certo masoquismo, como desabafa Elza (Betty Faria), quando diz, descendo as escadas, no fim da noite, que os “homens são todos uns barangas”. O sofrimento a domina e seu único consolo é desancar aqueles que não mais se deixam seduzir por seus (des)encantos.
Afinal, todos que se dirigiram ao salão de baile de um recanto de São Paulo o fizeram para desfazer-se do cotidiano, em busca de um pouco de devaneio, de sonho ou, quem sabe, de um pouco de paixão. Cada um à sua maneira ocupa seu espaço no salão, circunscrito a uma mesa, com direito a olhar em volta à procura de um par. Muitos por não terem tempo para delimitá-lo, passam as horas na pista iluminada pelo globo multicolorido, que gira sobre suas cabeças, mudando sombras e luzes, deixando sobressair nesgas de corpos e passos. A alegria, a ansiedade e a esperança se apoderam de homens e mulheres vestidos para seduzir, encantar e, por que não, se entregar ao outro e, enfim, deixar o salão com a sensação de ainda ser desejável. Então, visto desta maneira, a noite é cheia de possibilidades.
Personagens procuram algo de suas vidas que ficou para trás
Em “Chega de Saudade” o que há é isto: uma série de pontos que se movem no salão, a exemplo do que ocorre nos filmes de Robert Altman. Principalmente em “A Última Noite”, sua derradeira obra. Os personagens se movimentam pelo espaço com seus casos, à procura de algo que perderam ou deixaram para trás. Álvaro (Leonardo Vilar) vive com Alice (Tônia Carreiro), mas o salão o remete a seu amor por outra (Selma Egrei). Sozinho em seu espaço, a mesa no canto do salão, ele mira a foto da amada e ela vem a seu encontro. Está rodeado por centenas de pessoas, mas está só, quer estar só, com seus “recuerdos”. Do outro lado, numa mesa com amigas, ela observa-o, temerosa de perdê-lo. Mesma sensação que o jovem Marcos (Paulo Vilhena) tem ao ver sua namorada, Bel (Maria Flor) ser atraída pelo coroa Eudes (Stepan Nercessian), que sabe levá-la pelo salão com uma leveza e ousadia tal que ele se sente ameaçado.
Aqui não há nostalgia, é o novo se sentindo trombeteado pelo velho, com suas maneiras; sapato e calça brancos; camisa vermelha, espécie de marca do “sedutor de salão”. Um tipo que, visto de longe, não assusta a quem se acostumou com a “propaganda soft”, para a qual basta ser novo para ocupar espaço, ainda que nada tenha para preenchê-lo. E Marcos, ao contrário de Eudes, não se derrama sobre Bel, trata-a com rispidez e a confina num canto, enquanto ele; DJ, sonoplasta e eletricista; fica sentado à mesa de controle de som. Chega o coroa Eudes, maneiro e sorridente, e a faz desabrochar, indicando-lhe possibilidades, sensações e tratando-a com carinho. Como um velho malandro, ele sabe encantá-la, mesmo diante da amada, Marici (Kássia Kiss), que se vê preterida e, Marcos, nem por isto, faz escândalo.
“Latin lover” e “Vamp” destoam entre os dançarinos da noite
Neste contraponto, o roteirista Luís Bolognesi e a diretora Laís Bodanzky delimitam as diferenças, nem tão óbvias assim, entre os vários personagens que circulam pelo salão. As diferenças entre o casal jovem e o de meia-idade são matizadas apenas pelos anos. Enquanto o primeiro apenas começa sua vivência, o de terceira-idade está vendo seu crepúsculo. Álvaro se irrita com Alice, Marcos com Bel. Ambos são machões. O estresse domina-os, levando-os à exasperação. No entanto, ambos se preocupam com suas amadas. São, dessa forma, normais, ainda que dados a explosões. Reações não encontradas no dançarino argentino, latin lover, e na mulher misteriosa, a vamp, que a todos intrigam. E destoam, por se inserirem na galeria dos personagens típicos deste gênero de filme.
Mas se destoam, são eles que o eletrizam, pelo comportamento fora do padrão. Pela ânsia com que se buscam e a dança sensual que empreendem, eles põem o sangue a ferver, o coração a pulsar rápido. Ela, estilosa, com tiara, vestido que marca o corpo, lábios vermelhos brilhantes e um olhar de derreter corações de pedra. Estão sempre na penumbra, num espaço onde podem deixar a volúpia solta. Olhares invejosos os procuram e eles, meio escondidos, se entregam um ao outro. Uma relação fugaz, como se ela uma miragem fosse e ele um dançarino a projetar visões de damas com as quais sonha viver amores impossíveis. E ela se vai, deixando para trás um rastro de sedução. São instantes em que a imaginação voa; sensação a que o cinema acostumou o espectador, que anseia por isto.
Elza retrata mulher que clama por uma chance
Tais instantes, porém, mesclam-se a vôos baixos, feitos por personagens entregues às suas frustrações. Uma insana procura de par, quando, na verdade, estampa no rosto a frustração de uma luta perdida. Elza (Betty Faria), em seu melhor vestido, sedutora, faz tudo para ter um par, alguém que a leve para dançar, enquanto a amiga, levada por ela, se deixa ficar à mesa, olhando em volta, deslumbrada com o ambiente. Numa seqüência brilhante do filme, ela olha em volta, desesperada, atônita por não ser descoberta. O único que poderia fazê-lo é o solitário dançarino que desliza pelo salão entre os demais casais, mostrando-se, mas ninguém o quer. Ela também não. O olhar de Elza indica as perdas ao longo da vida; do se sentir desprezada e, como último recurso, oferece-se no salão. Rico personagem, feito por uma atriz acostumada às novelas, mas com classe e equilíbrio suficientes para deixar os anos se avolumarem em seu rosto. Algo se foi pelo caminho e ela o recuperou. Igual ao galanteador mentiroso que rodeia sua amiga e termina por ser desmascarado.
Caso do namorador que leva a esposa ao salão e atrai a ira da amante. Situação inusitada, que ele encaminha com natural delicadeza, mas que termina por mostrar-lhe o quanto os percalços podem gerar uma ação mal conduzida. Entre um número e outro, cada um dos personagens desfila suas agruras pelo salão, embalado por ritmos que vão do bolero ao forró, do samba-canção ao brega, dividindo com o som mecânico canções modernosas, só enlevadas pela vozes de Elza Soares e de seu parceiro. Estão ali para se divertir, mas o espaço longe de lhes proporcionar o que procuram, leva-os a impasses, que são os da própria vida. Nisso se consiste os volteios da narrativa, que fugiu ao estilo usado pelo diretor Etore Scola, em “O Baile”, que passeia pela história e tipos italianos, formando um mosaico multifacetado do país.
Filme marca quer atender público classe média
“Chega de Saudade” envereda por um caminho comum aos filmes brasileiros dos últimos anos: o de obras que tentam identificar-se com o grande público, sem necessariamente se debruçar “in totum” sobre tipos, histórias populares, de identidade nacional, ou que questionem o status quo. Enfim, são produtos para uma classe média que ainda vai ao cinema. Isto se evidencia no círculo feito em torno dos personagens. Nenhum deles é um típico dançarino paulistano encontrável nos bailões e forrós, ou nas pistas do antigo “Som de Cristal”, em São Paulo, ou no histórico “Elite”, na Lapa, Rio de Janeiro. Nestes havia todo um Brasil de múltiplas faces; negra, mestiça, branca, amarela, com seus descaminhos, esperanças e nostalgias, que brilhava nas noites e madrugadas, principalmente nos fins-de-semana, para nas segundas-feiras voltar à sua labuta pela vida, num país desigual.
Lógico que neles há, ou havia, povo, perfume suado, voz embargada e um tipo de paixão mesclada à dor. Nada arrumadinho, soft, pois os bailões, salões, forrós, ou as antigas gafieiras, simbolizam a capacidade dos segmentos populares de se inventarem enquanto personagens, em salões, onde desfilam sua majestade em brilhantes passos de dança, longe dos espaços que os excluem. Em “Chega de Saudade”, pelo contrário, mesclam-se casais, duplas e situações encontráveis em qualquer lugar do mundo. E adiciona-se a eles uma mescla de nacionalidades – o dançarino argentino e seu caso com a vamp, que bem poderia ser mexicana. Uma forma de tornar o filme palatável ao mercado latino-americano e, por extensão, a um público internacional muito mais amplo. Bolognesi e Bodanzky fazem isto ao privilegiar alguns personagens, centrando-se em contradições, suscetibilidades, frustrações e sonhos, pondo pitadas de erotismo nas cenas do argentino e da vamp.
Há sempre algo ocorrendo para além do personagem
Uma fórmula sem dúvida mercadológica, embora não tire o brilho de “Chega de Saudade”. Tudo nele é bem burilado, da cenografia de Marcos Pedroso à fotografia de Walter Carvalho e, principalmente, à montagem de Paulo Sacramento. Há sempre um contexto que amplia a visão do espectador. Se o personagem está em destaque (plano aproximado ou plano americano), há sempre algo ocorrendo para além dele. Sempre a dança, as luzes, um e outro personagem, dentre eles o garçom, que faz a ponte entre Álvaro e Alice, Marcos e Bel, contribuem para a inquietação, a ansiedade que permeiam o filme. O que o matiza, o torna identificável, são as músicas, elas sim remetem ao referencial do público, o balançar brasileiro, seja lá qual for a sua idade. Principalmente quando as evoluções no salão são movidas por canções populares, que atravessam décadas: “Risque”, “Alguém me disse” e “Carinhoso”. Refletem bem o Brasil.
Uma estratégia para além do filme, motivada pelo produto/marketing numa ponta e a busca de público/mercado na outra. Diferente de tempos passados, quando se primava pela afirmação da identidade nacional e da simpatia do público para esta ou aquela causa, fincando trincheiras contra o colonialismo e, portanto, contra o monopólio do produto cinematográfico norte-americano (leia-se Hollywood). O cinema era (e pode ser), assim, instrumento da luta contra o imperialismo, trincheira cara ao Cinema Novo. Com as mudanças na estrutura de produção, circulação e consumo, e a expansão do monopólio hollywoodiano, a estratégia, sem dúvida, mudou. Tornou-se assimilável ao padrão imposto pelo produto nitidamente comercial. Mas trata-se apenas de uma opção, não a única solução, dada à multiplicidade de caminhos possíveis.
Pela visão da Globo Filmes, uma das produtoras de “Chega de Saudade”, o modelo, com certeza, tornou-se único: sem produto pensado para o mercado, não existe indústria cinematográfica. Daí surgirem filmes-novelas, como “Olga”, aceitável pelo grande público, acostumado ao padrão global. É preciso chegar a ele através de filmes de aceitação imediata (consumo rápido e esquecimento, idem), que também possa preencher a grade da emissora. Enfim, uma fórmula que faz o produto circular por diversas mídias, proporciona lucro, gera platéia e dá a impressão de que o cinema nacional encontrou seu nicho. Pelo menos é o que se depreende numa rápida análise dos filmes saídos de sua “linha de montagem”.
Público se dispersa rápido depois do fim da sessão
“Chega de Saudade”, por este padrão, é um híbrido, que busca atender ao espectador mais exigente, mas, ao mesmo tempo, tende a querer satisfazer também aos anseios de um público mais amplo. Para um cinema encurralado em seu próprio espaço, com as salas tomadas por obras hollywoodianas nitidamente comerciais, não há como ficar à espera de sucessos-surpresas iguais a “Tropa de Elite”. É necessário encontrar uma estrutura de produção, distribuição e exibição que faça o produto/filme chegar ao público com mais assiduidade. Mas não é tampouco com fórmulas que se pode chegar ao grande público, pulverizado entre os segmentos de televisão aberta, DVDs, cinema e TVs fechadas(para poucos). Bom cinema não tem fórmula, sim empatia direta com o público, a partir de obras que com a qual ele possa se identificar.
Quando isto acontece, casos de “Dois Filhos de Francisco”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, o público acorre ao cinema. Numa segunda-feira, num cinema de arte, circuito Unibanco, em Belo horizonte, havia pouco mais de 15 pessoas na sessão das 19h10. Um público de filme de arte, interessado em ver parte de si em “Chega de Saudade”. Na saída todos se dispersaram rapidamente. Algo deu errado na fórmula. Talvez lhe falte ousadia, malandragem, personagens mais fortes, choques entre as damas de meia-idade e seus congêneres, negros e mulatos para colorir com sua sensualidade o mesclar de raças em meio à dança, traduzindo, desta forma, a realidade cultural brasileira. Talvez seja mais uma fórmula, mas no salão de baile não existe apenas frustrações, às vezes seus freqüentadores são borrifados por beijos, tampas e sangue. A malandragem que predomina em seu fechamento, demonstra o caminho da conciliação, do happy-end. E na madrugada as esquinas estão cheias de armadilhas e de marginalizados à espreita.
“Chega de Saudade”. Drama. Brasil. 2008. 92 minutos. Roteiro; Luís Bolognesi. Fotografia: Walter Carvalho. Montagem: Paulo Sacramento. Música: BiD. Direção: Laís Bodanzky. Elenco: Leonardo Villar, Tônia Carreiro, Betty Faria, Cássia Kiss, Stepan Nercesian, Paulo Vilhena, Maria Flor, Elza Soares.