Deng Xiaoping e a questão das minorias nacionais chinesas em 1950

Em tempos de ofensiva antichinesa espraiando-se pelo mundo, seria de muito bom grado expor as formas nada sutis com que os EUA saíram de uma situação de “aperto territorial” nas minúsculas Treze Colônias do nordeste e criaram um “espaço vital” que abra

Segundo Fidel Castro, “matou-se mais índios que Buffalo Bill matou búfalos”. Evidente que a atual correlação de forças não permite uma discussão mais séria a respeito. E quanto à China e a histórica tarefa de reunificar a nação levada adiante pelo PCCh? Quais foram os métodos empregados para – ao contrário dos EUA em sua expansão chauvinista-puritana e “em nome de Deus” –, levar a revolução aos legítimos domínios da nação chinesa desde há séculos?


 


A política com relação às minorias nacionais foi melhor sistematizada nos estertores da formação da 1º Conferência Consultiva Política do Povo Chinês e aprovada em sua primeira sessão plenária no dia 29 de setembro de 1949, é o chamada Programa Comum da Conferência Consultiva. Já a relação tanto com os camponeses, quanto com as minorias nacionais, foram codificadas em outubro de 1947 pelo Alto Comando do “Exército Vermelho de Operários e Camponeses” sob o formato de “Três Regras Cardeais de Disciplina” e “Oito Advertências” (1).


 



Deng Xiaoping e seu central papel na questão das nacionalidades


 


O processo que envolveu o domínio territorial da China pelo Partido Comunista da China (PCCh) e seu braço armado, o Exército de Libertação Popular (ELP) estendeu-se até o primeira metade da década de 1950. À liberação da zona sudoeste do país, onde se encontra a maior parte das 55 minorias nacionais chinesas, iniciou-se em 1947.


 


A tarefa de liberação do sudoeste foi encabeçada por um dos mais brilhantes comissários políticos do ELP, Deng Xiaoping. No período de 1947 e 1952 (quando foi promovido ao Birô Político do PCCh e tornou-se vice-primeiro-ministro de Zhou Enlai, Deng Xiaoping redigiu uma série de artigos e discursos acerca da questão das nacionalidades na China. Particularmente acredito serem documentos mais ricos e consistentes do que os elaborados por Stálin na década de 1910. Isso deve-se a própria com que os chineses apreenderam o marxismo em comparação com os russos, como por exemplo o papel do marxismo como complemento de uma já milenar escola filosófica onde a dialética (ying e yiang) já era componente metodológica. Abrindo parêntese, daí Mao Tsétung, sob influência da filosofia clássica chinesa ter empreendido uma visão para quem o aspecto mais importante da dialética ser a “unidade dos contrários”, ou seja: Mao reduziu as três de leis gerais da dialética de Hegel e Marx a apenas uma.


 


Continuando, o documento mais completo do assunto em pauta foi um discurso de Deng Xiaoping proferido a 21 de julho de 1950 intitulado: “Sobre o Problema das Minorias Nacionais no Sudoeste” (2). Tal discurso foi redigido objetivando a recepção da “Delegação Central de Visita às Minorias Nacionais”. Trata-se de uma brilhante síntese acerca da situação na frente sudoeste. Neste documento basilar e feito com impressionante visão de conjunto, o autor, em primeiro plano, expõe uma série de influências positivas e, também, os erros cometidos pelo ELP durante os primeiros contatos com as minorias étnicas do país em meio a ainda Longa Marcha ocorrida na década de 1930. Passa ainda por um exame crítico de sua experiência a frente da tarefa a ele incumbida e, como síntese, propõe soluções de curto, médio e longo prazos no sentido de contemplar os objetivos do governo e do PCCh no que tange a relação entre o governo e as minorias nacionais chinesas.


 


Por outro lado o estudo deste tipo de documento é essencial ao exame de como se construiu na China a carreira política de Deng Xiaoping. Não no dia-a-dia da burocracia e sim no fragor da luta, na linha de frente da luta-de-classes na China. Sua vida é uma verdadeira demonstração de como se forma um estadista marxista de alto nível.


 



Deng Xiaoping, a estratégica questão das fronteiras e o “chauvinismo han”


 


O futuro mandatário máximo do país inicia seu discurso comparando a situação da região sudoeste com a região Noroeste, sabidamente regiões de concentração de minorias nacionais. Atual em seu conteúdo, para demonstrar a delicadeza que envolve esta região fez notar que: “As fronteiras nacionais da China no sudoeste, estendem-se por milhares de quilômetros, os que habitam a extensa faixa fronteiriça são, em sua maioria, pessoas de minorias nacionais”. Em seguida, em tom de pensamento estratégico, Deng Xiaoping alça a questão nesta região ao seguinte patamar: “Se não se solucionar satisfatoriamente o problema das minorias nacionais, não se poderá resolver com êxito o da defesa nacional” (3).


 


A atual ofensiva antichinesa no mundo, as investidas da Al Qaida em territórios chineses do extremo-oriente (Xinjiang) e a fuga de Dalai Lama à Índia pela via da fronteira são demonstrações inequivocadas desta afirmação. Talvez nunca nos últimos 20 anos a integridade territorial chinesa tenha sido tão posta em questão como hoje.


 


Retornando, a complexidade da situação vivida naquele momento, uma grande prova de fogo ao poder de comando de Xiaoping, pode ser exprimida pelo fato de numa das áreas de atuação, mais precisamente na província de Yunnan viverem cerca 24 minorias étnicas, com história, cultura e costumes distintos e rivalidades nada desprezíveis e acumuladas por séculos de convivência e sob a égide de um Estado Nacional que havia desaparecido como poder político nos últimos 100 anos anteriores à revolução. Ao encontro de problemas de relação criados ao longo da história, um agravante exposto por Xiaoping reside no problema do histórico “chauvinismo de grande nacionalidade” praticada pela maioria han. Antes mesmo de um código de conduta, a prática das “Três Regras Cardeais de Disciplina” e “Oito Advertências”, passa a ser imperativo central da política chinesa em contato em regiões complexas como a descrita por Deng Xiaoping. Nesta direção Xiaoping expôs que um largo espaço de tempo será necessário para convencer as minorias nacionais de sua igualdade com relação à maioria han e isso passa, segundo ele, pelo convencimento de que as minorias nacionais “(…) são realmente iguais politicamente, que virão a melhorar suas condições econômicas e que se elevarão, também, suas condições a nível cultural” (4).


 


Por exemplo, atualmente o Tibet, possui uma rede de ensino em todos os níveis, politicamente são administrados pelos próprios tibetanos e é a região do país com maiores índices de crescimento nos últimos cinco anos. Nada disso era possível antes de 1951. Aproveitando o ensejo, sejamos conseqüentes: ninguém – daqueles que insistem em caluniar a presença chinesa no Tibet –, apresentou, até o presente momento, nenhum argumento que comprove suas (fabricadas) assertivas de “destruição cultural” e “opressão nacional” dirigida pelo governo central ao Tibet. Atentem a isto: quais as provas apresentadas até o momento?



 


A questão política


 


A cristalização de um processo político que contemplasse a autonomização de determinadas regiões de minorias nacionais na China, na visão de Deng Xiaoping, seria um processo cujo tempo de duração demandaria da existência ou não de certas condições objetivas. Este processo de autonomização pode-se resumir, entre outros elementos, no cimento de uma unidade nacional almejada, em primeiro lugar pelo PCCh. O primeiro passo foi a implementação do Programa Comum precedido de um amplo programa de propaganda do mesmo, de forma que um relevo para atual política amistosa entre a etnia majoritária e as demais fosse assentado.


 


O segundo passo foi a demonstração prática da diferenciação de tratamento dispensado pelo ELP à população local em comparação a práticas de governos anteriores ou dos senhores de guerra. Sobre a prática concreta dispensada pelos, Deng Xiaoping expõe o seguinte por ocasião dos contatos iniciais entre o citado ELP e uma região de maioria tibetana (Xikang), atualmente localizada na província de Sichuan: “Qual era a situação dos tibetanos no passado? A dominação reacionária em Xikang os deixou muito mal parados. Nós, de forma diferente, ao entrar ali, começamos por proclamar nossa política sobre a questão nacional (…); ao mesmo tempo, nosso exército demonstrou na prática seu excelente estilo de trabalho nos problemas concretos (…), respeitando os hábitos e costumes e as crenças religiosas dos tibetanos e deixando-se de se alojar nos templos lamaistas, granjeando assim a confiança de nossos compatriotas tibetanos. Eles comentaram que nosso exército é maravilhoso, pois nossos soldados se abstiveram de entrar e de alojar-se nas casas da população civil sempre que não houvesse permissão, independente de estar chovendo aos cântaros” (5).


 


Evidente que o objetivo aqui não é pintar um mar de rosas em meio a um pântano repleto de espinhos. Todo processo é movido de contradições e a luta-de-classes é o motor primário do processo. O processo em pauta é de pura luta-de-classes e uma série de confrontos foram necessários para que se encerrasse a bom termo o processo descrito, como o próprio desenrolar dos fatos no Tibet na segunda metade da década de 1950 são testemunha. O que vale é a demonstração da diferenciação de prática política concreta entre o poder central chinês e suas minorias nacionais e a dos processos de dominação externos, a começar os descritos por Marx em “A Teoria Moderna da Colonização”.


 


Voltando ao foco, o terceiro passo concomitante com o exposto acima consistia na formação de “governos de coalizão” hegemonizados por membros das minoras nacionais como forma de colocar em prática a essência do “Programa Comum”. Isso atende a demanda de solucionar, inclusive demandas surgidas de contradições no seio das próprias nacionalidades entre si e com a nacionalidade han. Mas não somente isso: pari passu com as reformas, serviu párea colocar abaixo a parede da dominação reacionária no interior da China. Neste aspecto Deng Xiaoping, numa dialética consistente, urgia pelo apressamento das reformas democráticas onde existissem condições objetivas para tais (núcleo de governo formado por líderes de entidades progressistas).


 


Neste contexto de experimentações de tratamento com o povo e formas novas de governo em ambientes de milenar complexidade, o alvo do ensaio era nitidamente um: o Tibet e sua iminente liberação. Sobre isso, ressalta Deng Xiaoping: “Na implementação da autonomia regional no sudoeste, o leste de Xikang é a zona que deve dar o primeiro passo, porque é onde estão mais ou menos dadas as condições nas diversas ordens. Primeiro, vivem de forma concentrada os compatriotas tibetanos; segundo, existem certos cimentos que lançamos no passado; terceiro temos estabelecido boas relações com os compatriotas tibetanos desde que nosso exército iniciou sua marcha sobre esta zona (…). Se trata de um problema de suma importância, e sua solução satisfatória terá influência direta sobre o Tibet” (6).



 


O comércio como peça-chave do processo de integração nacional


 


A construção de condições objetivas favoráveis no âmbito da conjuntura demanda fatores como a própria história em si e também da política de acúmulo de forças. Para o caso em questão, é muito factível que a conduta dos comandados de Deng Xiaoping do ELP contribuiu muito à consecução do primário objetivo de unificar o país, uma grande aula de acúmulo tático de forças. Porém no campo da transformação estrutural, a economia é a expressão concreta da política. Afinal, como nos lembrou um dia Ignácio Rangel: “(…) a política é a economia feita por outros meios, como a guerra é a política feita por meios especiais” (7).


 


A centralidade da questão econômica pode ser vista e sintetizada nas palavras do próprio Deng Xiaoping: “A autonomia regional nacional será letra morta se não lograrmos êxitos econômicos. As minorias nacionais desejam tirar proveito de autonomia regional, de modo que o surgimento de embaraços políticos serão resultado de problemas econômicos não solucionados” (8).


 


A centralidade da construção econômica em detrimento da luta-de-classes característico do pensamento de Deng Xiaoping e transformada em política de Estado na China em 1978 pode ser percebida em outro momento de seu discurso, como se vê: “O político deve se basear no econômico. O que podemos fazer si não termos em que nos basear solidamente?É inadmissível que nos limitemos a prometer a autonomia regional nacional como um cheque sem fundos e nos permitamos consumir todos os víveres que possuem as minorias nacionais” (9).


 


A solução dos problemas econômicos imediatos das regiões de minorias nacionais na China, para Deng Xiaoping, passava pela consecução de duas tarefas principais. A primeira que consistia na quebra do isolamento econômico de tais regiões com relação ao restante do país e principalmente os centros urbanos consumidores. Trata-se, do primeiro passo no caminho da unificação econômica regional do país e a integração de mercados locais em único mercado nacional. Enfim, o lançamento das bases à constituição de uma divisão social do trabalho e para isso a construção de vias de comunicação e infra-estruturas em estradas e ferrovias era de primaz importância, conforme colocou Deng Xiaoping: “(…) Xikang ainda não está aberta ao trafego automobilístico, de modo que é mister resolver apropriadamente problemas tais como: viabilizar sua comunicação econômica com o resto do país, ver que artigos pode-se trazer do interior e como levar a outras regiões seus produtos locais e fixar os preços de forma que seus habitantes possam auferir benefícios” (10).


 


Já a segunda tarefa imediata a ser implementada, na visão de Xiaoping, resume-se na constituição de um amplo aparato institucional e política como base ao fomento do comércio. Segundo Xiaoping: “O comércio constitui-se no elo principal da ajuda que poderemos prestar ao desenvolvimento econômico das minorias nacionais. O trabalho econômico deve ser centrado no comércio”. Sobre a mediação entre o poder central e as regiões de minoria é importante tal aporte do líder: “Certamente no comércio aplicamos o princípio de intercâmbio via equidade de valores, porém as vezes devemos estar dispostos a aceitar prejuízos por conta própria” (11).


 


Fica clara a reversão das intempéries inerentes “lei do desenvolvimento desigual e combinado” tendo como principio norteador a elaboração de uma clara política regional, onde transferências territoriais de renda serve como reverso aos indesejáveis efeitos da anarquia da produção e suas leis sobre o território. Eis uma das características do socialismo e expressão de uma utilização das leis econômicas em favor dos objetivos do homem. Assim a economia serve aos desígnios magnos da política. E no caso da China, com uma clara noção do papel central do comércio interno.



 


O papel revolucionário da economia de mercado


 


Sob um olhar mais relacionado ao fato e em conexão à teoria do desenvolvimento, pode-se vaticinar que Deng Xiaoping – ao salientar o papel central do comércio – encontrou a essência do motor do processo de desenvolvimento das forças produtivas. A história econômica nos ensina que o processo de industrialização encontro solo propício ao seu desenvolvimento nos marcos de uma produção pré-capitalista de mercadorias. Tal estágio pré-capitalista desenvolve-se nas entranhas da economia natural (voltada ao autoconsumo do produtor e sua família) mediado por tributos tipicamente feudais. Logo, a pequena produção familiar ao direcionar ao mercado seus excedentes (que por sua vez, costuma desenvolver-se como transição de uma economia natural voltada ao autoconsumo familiar no seio da gleba feudal e mediados por préstimos tipicamente feudais) cria a principal condição objetiva ao desenvolvimento econômico, que pode se resumir no processo de transferência do trabalhador e seu produto para a economia de mercado. Eis a essência revolucionária e o papel histórico reservado ao instituto do mercado.


 


Por outro lado, ao ser fator de transferência de atividades especializadas antes trabalhadas no seio da fazenda, o mercado e seu desenvolvimento cria as condições objetivas essenciais ao desenvolvimento da divisão social do trabalho. O Estado Nacional moderno é causa e efeito do desenvolvimento do comércio entre-feudos e conseqüente aumento da interdependência econômica, dando margem ao surgimento de uma economia nacional e internacional. A história da formação do Estado Nacional chinês (Império do Meio) é um típico exemplo da relação entre comércio entre feudos ou reinos e a constituição de Estados Nacionais. O intenso e milenar comércio regional é uma das bases que serviram de incorporação ao Império Chinês de uma série de reinos e condados periféricos (Tibet, p. ex.).


 


Ao caso específico do grande desafio de unificar um vasto país composto por dezenas de nacionalidades posto pela história à recém-nascida República Popular da China, o que vale é colocar em relevo que a sagacidade de seus líderes, como Deng Xiaoping , reside na sapiência de transformar o planejamento estatal em ferramenta no sentido de viabilizar uma divisão social do trabalho de novo tipo, uma divisão social do trabalho de caráter socialista. Afinal, o planejamento econômico, tanto no capitalismo quanto no socialismo é elemento central na elaboraçao e execução de grandes tarefas de nível regional, como por exemplo a unificação regional e econômica de um vasto e complexo país como a China. E a viabilização de uma transferência de atividades, antes destinada ao próprio consumo, para o mercado é fator revolucionário em todos os sentidos do termo.


 


E a implementação da política de Reforma e Abertura em 1978, pelo próprio Deng Xiaoping, tendo como base a capacidade milenar do camponês médio chinês na arte do comércio, mais a atual política agressiva de transferência de renda litoral-interior é apenas mais um capítulo desta história de mais de 60 anos.


 


 


Notas:


 


(1) As “Três Regras” são: 1) obedecer às ordens em todas as ações; 2) não tomar das massas nem uma só agulha, nem uma só quota de milho e 3) entregar todas as coisas obtidas como troféus. Já as “Oito Advertências” se exprimem em: 1) falar com cortesia; 2) pagar com honra o que se compra; 3) devolver tudo o que solicitado com presteza; 4) indenizar por todo objeto danificado; 5) não prender, nem injuriar as pessoas; 6) não estropiar os pobres; 7) não ter liberdades para com as mulheres e 8) não maltratar os prisioneiros.


(2) XIAOPING, Deng: “Selected Works”. Foreign Languages Press. Volume 1 (1938-1965). Beijing, 1992, pp. 190-200.


(3) Ambas citações estão contidas em (sob tradução nossa): XIAOPING, Deng: “Selected Works”. Foreign Languanges Press. Volume 1 (1938-1965). Beijing, 1992, p. 190.


(4) Idem, p. 191.


(5) Ibidem, p. 192.


(6) XIAOPING, Deng: “Selected Works”. Foreign Languages Press. Volume 1 (1938-1965). Beijing, 1992, p. 196.


(7) RANGEL, I. “O direitismo da esquerda”. In, “Obras Reunidas de Ignácio Rangel”. Contraponto. Volume 2. Rio de Janeiro, 2004. p. 395.


(8) Idem ao 6, p.196.


(9) Ibidem, p. 197.


(10) XIAOPING, Deng: “Selected Works”. Foreign Languages Press. Volume 1 (1938-1965). Beijing, 1992, p. 197.


(11) Idem, p. 197.


 

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