“Gran Torino”: para enxergar o outro
Em filme sobre os reflexos das mudanças sofridas pelos EUA nas últimas décadas, Clint Eastwood discute o peso das relações entre povos diferentes vivendo no mesmo espaço.
Publicado 22/05/2009 18:15
Nos filmes de Clint Eastwood, os personagens estão sempre em busca de um recomeço para purgar seus males. Do faroeste “Os Imperdoáveis” ao drama-familiar “A Troca” existe ainda a possibilidade de que esta busca encerre mais impasses que soluções. De qualquer forma, como em “Sobre Meninos e Lobos”, o passado tem um peso que os vergam a ponto de eles sucumbirem sem chances de redenção. Mas em “Gran Torino” este tema volta multifacetado, trazendo inúmeras leituras, sendo a principal delas a que aparece em cacos, pois remete ao passado do país, hoje juntando seus pedaços para tentar regressar ao topo. Então, mais do que falar sobre o operário da Ford e veterano da Guerra da Coréia (1950/1953), Walt Kowalski (Clint Eastwood), o filme tenta refletir sobre um EUA que não existe mais. O roteirista Nick Schenk e o diretor Eastwood o fazem a partir de comentários esparsos do filho de Kowalski, Milt (Brian Haley), que dirige utilitário asiático ao invés de caminhonete estadunidense, da velha vietnamita que o critica por ainda morar num bairro agora habitado por sua comunidade e da barbearia do italoamericano Martin que frequenta.
Os cacos aparecem ainda na carga que o país tem de carregar, após a derrota para o Vietnã: os hmongs, etnia presente nos Laos, Tailândia e China, apoiaram os invasores e, após a derrocada, alguns deles foram obrigados a migrar para os EUA. Formam uma pequena comunidade no bairro, vivendo de suas tradições e tentando manter os filhos sob controle. Alguns deles, no entanto, preferem o caminho das gangs e pressionam o jovem Thao (Bee Vang) para de elas fazer parte. Kowalski surge então para juntar os cacos desse emaranhado de fios cujos pedaços são de difícil junção. Na terceira idade, vivendo sozinho, ele passa o tempo mais curtindo seu rancor aos imigrantes, que não conhece; aos filhos dele afastados e a tudo aquilo que arranha o passado outrora glorioso, simbolizado na bandeira estadunidense que flana em sua varanda e o velho automóvel Gran Torino 1972 na garagem.
Gran Torino é objeto de desejo dos jovens
A cada cena, Schenk e Eastwood acrescentam novos dados para a melhor compreensão de uma nação, estruturada a partir dos mais diversos povos, etnias e nativos verdadeiros, os indígenas. Alguns aparecem de maneira desfavorável, como os afro-descendentes, numa única sequência, e os anglosaxões são raros no bairro. Estes, quando o fazem, são repreendidos por estarem numa área onde não deveriam. Viúvo, solitário, ele tenta sobreviver sob os escombros de algo cuja compreensão lhe escapa. Ranheta, sectário e raivoso, ele transforma sua casa numa fortaleza, menos por um importante detalhe: os anos gloriosos estão à vista, simbolizados pelo Gran Torino 1972, objeto de desejo da gang hmong. O automóvel, raridade, é tratado como troféu, prêmio por cerca de 50 anos de trabalho na Ford, não sem razão única recompensa por estas cinco décadas. Em torno circulam ódio, rancor e cobiça.
São estes detalhes que, normalmente, contam num filme que não quer ser raso, entregando todo seu conteúdo em rápidas cenas. Não que em pouco menos de 10 minutos já não se saiba exatamente para onde “Gran Torino” vá, pois a trama principal remete sem rodeios ao feito por James L.Brooks em seu filme “Melhor É Impossível”, em que o ranzinza e misógino Jack Nicholson passa de vilão a herói ao se apaixonar pela garçonete que o atende todo dia. Mas a dupla Shenk/Eastwood estrutura sua obra de maneira que as camadas se desdobrem mostrando a mutação do falcão Kowalski, sob bombardeio dos filhos, do padre Janoksin (Christopher Caley) e da velha hmong, tão preconceituosa quanto ele, num ser humano cuja agressividade muda de alvos. Este tipo de transformação, cara ao cinema estadunidense, tem por norma atrair os opostos, colocá-los numa perspectiva em não prescindam um do outro. John Ford o fez em “Rastro de Ódio”, opondo o racista John Wayne ao mestiço Jeffrey Hunter, para no final estarem tão ligados que fica difícil separá-los.
Jovem hmong quer fazer o seu próprio caminho
Em “Gran Torino” os sinais das guerras travadas, justamente a coreana que tantas cicatrizes ainda trazem aos EUA, haja vista a divisão das Coréias (Coréia do Sul e Coréia do Norte), as frequentes refregas e condenações à última – são mostrados frequentemente por Kowalski. São referências de valores e de avaliações do outro usadas para indicar rumos ao jovem Thao, hmong-estadunidense que tenta encontrar seus próprios caminhos, longe da gang e da própria família. No entanto, estes valores foram carcomidos pelas mudanças, refletidas nos jardins mal cuidados, nas ruas esburacadas, nas casas despencando. Kowalski fica como que escorando, remendando um e outro, numa tentativa de retornar aos bons tempos. Estes bons tempos, bem sabemos, é uma ilusão construída em cima da manutenção de status e confiança num futuro, que pode recuperá-los ou não. Embora, inconscientemente, lute para conservar parte deles, algo em torno dele permanece inconcluso. Justamente o que o perturba.
Novamente, as marcas da dramaturgia hollywoodiana pesam; menos do que se imagina. Kowalski não vai, aos poucos, passando por uma mutação; são as pressões sobre ele, notadamente do padre Janoksin, que apontam para onde não deve ir. Não é a fé, a confissão, a regeneração que o fará se tornar um ser humano melhor, mas sim as contradições do país que o fazem ver no outro uma ameaça constante. Os hmongs, que lutaram a favor dos EUA na Guerra do Vietnã, formam agora uma comunidade que ocupa ruas e avenidas do bairro, salvo pelo sobrado onde ele mora. Embora ele, Kowalski, não tenha refletido sobre isto, eles fazem parte do passado do país cuja derrota teve como dívida a pagar a proteção deles por várias gerações. Estão ali largados, entregues à própria engenhosidade, mas não podem ser afastados como ele pretende. Racista, ele não os reconhece, nem intenta fazê-lo, até que um fato inusitado o faça mudar de comportamento. Este surge através da vertente dos contrários, de um personagem à margem de tudo, inclusive da sociedade dita avançada: a jovem hmong, Sue, miúda e astuta.
Xamã faz Kowalski enfrentar suas verdades
Com esta vertente, a dupla Schenk e Eastwood muda o eixo da dramaturgia do personagem irascível que fica bonzinho e aumenta os confrontos entre Kowalski e os hmongs. Sue o guiará pelos caminhos insuspeitos da diferença, sem que um adira à cultura do outro. O recurso à culinária, ao estômago, à cordialidade, nem sempre é sem atropelos. Cada um tem razão ao reclamar da animosidade do outro, com a vantagem de a religião aqui aparecer na figura do não fervoroso xamã, que age como psicanalista fazendo o paciente confrontar-se com verdades jamais admitidas. Verdades, aliás, que ignoram a penitência, o rezar ave-marias e pai-e-nossos. Funciona de tal forma que faz emergir o cotidiano do Kowalski real, por meio do tratamento reservado a Martin e ao empreiteiro que dá emprego a Thao.
Pela psicologia do personagem, no caso Kowalski, é da natureza do homem, sentido particular, ser grosso, encher suas frases de palavrões e criar em torno de si um clima de “vamos mandar ver”. É por esta trilha que ele envereda quando age como mestre de Thao. Uma forma de iniciação ao mundo adulto, a partir da “visão do macho”. Às vezes, ela é reforçada pelo uso da violência, simbólica tanto pela psicologia do personagem, ex-soldado acostumado a fazer uso dela (Quantas pessoas você matou? – pergunta-lhe Thao), quanto pelo policial Harry Callaham (1), interpretado por Eastwood nos anos 70 e 80. As questões aqui, entretanto, são de outra natureza, é mais sobre o que funciona ou não agora, com os sinais de época invertidos. Kowalski ainda tem agilidade suficiente para se impor aos membros da gang, porém sua visão do confronto, depois da iniciação ao universo hmong, é outra. Há muito de proteção, de culpa não assumida, por parte dele, principalmente em relação aos filhos. A reparação vem por meio da proteção que dá ao jovem Thao, à maneira como o trata, iniciando-o no mundo adulto, seus diálogos afiados com Sue e a proteção que dá à família deles.
Eastwood abre mão dos artifícios atuais
Desnecessário dizer que “Gran Torino” está quilômetros acima de “A Troca”, penúltimo filme de Eastwood. Neste último, ele deixou de lado o rebuscamento, a história cheia de circunvoluções em torno da busca obstinada empreendida pela mãe (Angelina Jölie), depois que o filho adolescente desaparece, e a perseguição que impõe a polícia. Desta vez, como sempre, o menos é mais. Os tons azulados, a narrativa seca, os cortes precisos, a câmera quase imóvel contribuem para o espectador entender as nuances, sem precisar de exercícios desnecessários. Afinal, o que se quer aqui é contar a história do ex-soldado e ex-operário e suas perdas e encontros. Em dado instante, Kowalski troca o tom explícito de falcão pela ameaça simbólica de quem está atento; entretanto, não disposto ao confronto com os inimigos, ferozes ou mais do que ele. Tem muito da tática atual dos EUA, embora tenha sido produzido em 2008, de se permitir respirar, reduzindo o número de inimigos e de zonas de atrito. Kowalski opera na mesma escala, com a diferença de que os anos e a saúde já não o permitem funcionar nos moldes da Guerra da Coréia.
Um trecho da trilha musical, de Kyle Eastwood e Michael Stevens, deixa ao espectador a ideia de que a visão do próprio republicano Eastwood, ex-prefeito de Camel, Califórnia, sobre as relações com o outro mudou. “O mundo não é nada mais do que todas as coisas pequenas que deixa pra trás”. Mostra-o por meio das pequenas coisas que o racista Kowalski aprende com a simpática e insistente Sue, interpretada com sensibilidade pela atriz Ahney Her, quando esta o enfrenta em pé de igualdade. Dizem verdade um para o outro, mas ela, sem rodeios, o leva a compreender o papel de sua etnia na luta inglória de seu país contra o Vietnã. E cobra-o na forma de respeito, compreensão e exata dimensão do preço cobrado pelos hmongs que agora ocupam o bairro. Não redime a ambos nem a classe dirigente estadunidense pela devastação perpetrada contra o povo vietnamita – e de outras etnias – durante os mais de 10 anos que ocupou o Sudeste Asiático. Porém, sua referência atesta o quanto ainda resta de superação deste que foi o conflito imperialista emblemático dos anos 60.
Sue é o equilíbrio do grupo de amigos
O cinema de Eastwood é, assim, um cinema que se debruça sobre as influências do passado sobre seu presente, usando fios que compõem um mosaico dos conflitos em que os EUA estiveram envolvidos desde a Guerra da Coréia. E espalhou refugiados pelo planeta, milhares deles abrigados em seu próprio solo. Difere dos tratamentos dados por Coppola (“Apocalipse Now”) e Stone (“Nascido em Quatro de Julho” e “Platoon”), por não tê-los como tema central, mas não deixa de pegar suas nesgas para confirmar suas nefastas consequencias. E ajuda a compreender o beco sem saída em que, desde a Guerra Fria, seu país está metido. Exatamente por não compreender a natureza do povo ao qual impõe sua cultura e seu sistema político-econômico acaba pagando alto preço. Quando Kowalski passa a interagir com os hmongs formam um corpo único, a diferença inexiste, tudo fica mais fácil. Sue, espécie de equilíbrio do grupo, triunfa, com sua delicadeza e diplomacia, sinal de que ele, Kowalski, não tinha superado seus limites de aprendizado e dela precisava para fazê-lo.
Até mesmo o padre Jonoksin, numa cena que diz mais sobre o catolicismo que qualquer teologia dela emanada, admite que alguma coisa aprendeu com ele. Suas idéias iniciais sobre a confissão, a partir do pecado, eram insuficientes para resgatá-lo para seu rebanho, antes da Via Crucis por ele passada. Não deixa de ser uma confissão da limitação de sua prática, porquanto a superação não viria através da remissão dos pecados, mas da superação de sua formação político-social. Numa cena que bem explica isto, Kowalski tem como primeira reação à ação do outro, Thao, pegar um rifle e um revólver para evitar que roubasse seu Gran Torino. Iniciativa repetida várias vezes com menos eficiência que o diálogo mantido por ele depois com o jovem hmong. E mais ainda no telefonema que dá ao filho Mitch num instante de humildade, prenúncio de que algo de elevado significado se passara com ele. Para aqueles que gostam do Eastwood da fase pré-autoral, há muito ele não atende a seus reclamos, principalmente na brilhante seqüência em que a encenação cede lugar à violência e Callahan/ Eastwood já não se chama mais Harry, O Sujo.
“Gran Torino”. (“Gran Torino”). Drama. EUA. 2008. 116 minutos. Roteiro: Nick Schenk. Direção: Clint Eastwood. Elenco: Clint Eastwood, Ahney Her, Bee Vang, Christopher Carley, Brian Haley, John Carrroll Lunch.
Tem a ver
Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes, desconhecidos, lhe dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, fará breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que, de uma forma ou outra, discutem a Guerra do Vietnã, sob uma ótica adversa à da obra analisada nesta semana.
Corações e mentes (“Hearts and Minds”). Documentário. EUA. 1974. 100 minutos. Direção: Peter Davis. Dos filmes obrigatórios para se entender o conflito do Vietnã, este traça um corajoso painel sobre o envolvimento dos EUA, sua política e suas ações em depoimentos e cenas de arrepiar. Nele estão registradas cenas que marcariam época, como a da execução do soldado em plena rua, diante de dezenas de pessoas, a fuga de milhares de famílias vietnamitas da área de conflito, com a criança nua e queimada de napalm à frente. Continua sendo um documento precioso sobre o que um império pode fazer para manter seus espaços em regiões de seu interesse político-econômico e, neste caso, ideológico. E também porque mobilizou tantas pessoas ao redor do mundo clamando pelo fim da agressão ao pequeno país asiático.
Apocalipse now – Drama/Guerra. EUA. 153 minutos. Roteiro: John Millius e Francis Ford Coppola, a partir da novela do escritor anglo-polonês Joseph Conrad. Direção: Francis Ford Coppola. Mais do que uma reflexão sobre o conflito EUA/Vietnã, este filme desce às suas profundezas, denunciando a insanidade que dominava os que a conduziam, a ilusão de poder e as fantasias de um império em meio a uma geografia e cultura que não entendia e com ela não se importava, apenas lutava para manter suas áreas de influências no sudeste asiático.
Notas
(1) Harry Callahan: personagem interpretado por Clint Eastwood em cinco filmes, a partir de “Perseguidor Implacável” (1971), dirigido por Don Siegel. Os outros são: “Magnum 44” (1973), “Sem Medo da Morte” (1974), “Impacto Fulminante” (1982) e “Dirty Harry na Lista Negra” (1988). Racista, fascista, violento, tinha como lema executar os criminosos sem submetê-los à justiça. Para ele, a corrupção nos órgãos oficiais, a liberdade dada aos bandidos, a falta de pulso firme no trato com eles e a liberalidade da Justiça eram responsáveis pelos altos índices de criminalidade. Por isto, fazia justiça com a Magnum 44 que o Departamento de Polícia colocava em suas mãos. Tipo de filmes que fala muito sobre uma época no país e, condenável, embaralha os códigos de ética até hoje.