Grito de amor e cólera

Dias atrás revi o belo filme de Aluízio Abranches, “Um Copo de Cólera”, baseado na obra homônima de Raduan Nassar, tendo como protagonistas Julia Lemmertz e Alexandre Borges.

Realmente, a obra de Nassar é uma verdadeira esporrada, um vômito, uma descarga irada contra o mundo, um escarro contra o semelhante, contra a vida e, quem sabe, contra o amor? Das cortinas se abrindo no início da grande cena trágico-patética, profundamente verdadeira e simulada (como no teatro!), apesar do público restrito (dois caseiros – a Mariana que usa com tanta intensidade a palavra “perplexa” – e um cachorro), passando pela agressão discursiva, verborrágica, pelo discurso hemorrágico do protagonista masculino em seu derrame cerebral que, por sua vez, precisa dos gritos secundários de uma atriz (uma das malditas insetas?) vociferando, cheia de ironia maldosa, sarcástica, pondo unhas nas palavras e bradando que a performance dele não passa de pura catarse, coisa de canalha, de quem não é gente, de quem não passa de um monstro, até simularem uma cena de amor/ódio brujo e verem a máscara cair no meio do picadeiro, numa mistura de esporro e porrada (haja esperma!), e o foco fechar num menino-homem prestes a ser engolido de volta ao útero, retornando-penetrando naquele órgão que de fato ele tanto ama e deseja…. Ele termina no chão, no solo, lançado de volta à terra, solitário, sem palco, sem plateia, sem luzes… Baixam-se então as cortinas… e tudo recomeça, numa nova perspectiva; a inseta retorna ao local do crime, ao pilantra fascista cuja performance só ganha sentido com a presença dela, com a coparticipação dela, com o rosto dela pedindo para ser esbofeteado… e com a irrupção das formigas.

Afinal, a cólera necessita do seu anverso, da culpa, pois nesta relação doentia entre vontade de poder e volúpia da submissão, alguém tem de pagar, alguém tem de sofrer e expiar, alguém tem de esbofetear e alguém tem de dar a face para o sacrifício, numa purgação compulsiva, na qual se atiram todas as “verdades” na cara do outro, mesclando carinho e crueldade, rancor e desejo, volúpia e destruição… Será que o veneno seria então a própria cura? Se a culpa for de fato um dos motores do mundo…

O que os une, e o que os separa? E o que volta a uni-los de novo, num círculo viciosamente intermitente? O copo de cólera derramado, jogado contra o objeto de amor, espatifado no chão do mundo estarrecido, aquela máscara crispada e fora de si expelindo goela abaixo o bofe, a carniça e o bucho, e regurgitando a atávica Weltschmerz (dor do mundo) profunda e visceral, e a outra máscara daquela femeazinha zombeteira, escarnecendo do espetáculo escandaloso e sacana, compõem apenas um momento na vida desse seres extraviados por Deus, sem nem ao menos terem a ajuda de algum diretor cênico.

Um soco no estômago – como já definiram essa obra – , que nos faz pensar no reverso disso tudo: na harmonia e na paz, na realização dos desejos mais voluptuosos e no respeito ao outro, no amor pela vida, no amor por si mesmo e no amor pelo outro. Vale a pena ver e ler este soco pungente e apaixonado.

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