IV – Griô
Publicado 18/06/2010 19:27
“Pra começo de conversa
Peço a bênção aos mais velhos
Que me dão sabedoria
Pra brincar com estes versos” (Cordel de apresentação da Ação Griô).
Essa é uma ação que faz refletir sobre a dimensão sagrada da vida e da lógica da convivência econômica baseada na partilha, dois aspectos tão preservados pelas culturas tradicionais brasileiras. Quando o candomblé preserva um olho-d’água ou uma cachoeira como espaço sagrado, ele está preservando a vida. Quando um reisado sobrevive porque todos da comunidade oferecem algo, nem que seja um prato de comida para os caminhantes, ele está realizando a partilha, cultivando um comportamento essencial para a coesão social. Essas expressões da cultura tradicional rompem com o ciclo de alienação e vulgarização da vida e servem de base para a construção de um país justo e solidário.
Nas sociedades contemporâneas vivemos um processo de transformação dos desejos, das horas e até da própria alma. Tudo torna-se mercadoria. Isso resulta na alienação que as populações vivem em relação às possibilidades de conquista de autonomia e emancipação. O contrário da sacralização da vida e da partilha é a vulgarização e a banalização da vida, o individualismo e o egoísmo, a transformação de tudo e de todos em mercadoria, a coisificação do ser. Neste cenário emerge a violência urbana, o desrespeito com o trabalho alheio, a exploração desenfreada, a ausência de amor ao próximo. Tudo perde sentido e somente o lucro tem vez.
No entanto, manter apenas a louvação da tradição não resolve. Afinal, como demonstrou Eric Hobsbawm, as tradições foram inventadas um dia, são construções históricas e incorporam preconceitos e ideologias. O mesmo acontece com o pragmatismo. Não há nada mais atrasado que se guiar pelo senso comum; por trás das ideias consolidadas há construções históricas e o pragmatismo torna-se inimigo da transformação profunda, acomodando-se a uma realização sem questionamento. É nesse momento que surge a necessidade de a tradição se reinventar e a memória assume um papel vital, de reelaboração e reinterpretação da vida. Uma invenção que envolve o baralhamento, a quebra de hierarquias e a construção de novas legitimidades, sem que haja imposição ou uniformização de culturas. O saber popular, que é diferente do senso comum, assume um novo papel e o conhecimento não formal é percebido em toda sua sofisticação e profundidade.
O diálogo intergeracional e multissetorial proposto pelo Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô, com a reinvenção da Roda da Vida, apareceu como um bom caminho a trilhar. Sem o formato de uma pedagogia única, percebi que valia compartilhar a experiência do Grãos de Luz e Griô, uma ação que une educação biocêntrica com método Paulo Freire e culturas tradicionais. Ao mesmo tempo em que a roda se constrói, ela se rompe, em sucessivos exercícios de conversa, primeiro em duplas, depois trios, quadras de pessoas, novas versões; o ouvir o outro, auscultas sensíveis, percepções sensoriais, o uso de músicas, jogos. Tudo com encantamento.
Com a Ação Griô são realizadas oficinas culturais, místicas, caminhadas, rodas de oralidade. É o conhecimento ancestral sendo valorizado, o conhecimento do comum, dos mestres, que vem do fundo de nossa alma. Esta ação não havia sido planejada. Mas sentia que faltava algo. Cultura digital, juventude, escola, Ponto de Cultura. Faltava a ancestralidade, o elemento terra, um chão firme para pisar e dar o salto. Foi quando, ainda no primeiro edital, uma entidade manda sua proposta:
“A pedagogia griô
Vem de um Ponto de Cultura
De Lençóis, lá na Bahia
Vida Roda se mistura
O Grãos de Luz e Griô
Criança velho professor
O criador e a criatura”.
Era o que faltava. Conversamos por mensagem eletrônica, pedi maiores detalhes sobre a prática deles, sobre a tradição oral. Griô é o abrasileiramento de griot, palavra francesa, também inventada, uma construção que estudantes da África subsaariana (Mali, Senegal) fizeram ao ir estudar na França; esses estudantes buscavam uma palavra que desse sentido comum às suas tradições, às diferentes denominações dadas aos genealogistas, brincantes, músicos e narradores de história. Os griôs caminham de aldeia em aldeia mantendo viva a linha de cultura de seus povos. São culturas de transmissão oral, mas nem por isso menos complexas e profundas que a cultura escrita. O mestre africano Tierno Bokar Salif aponta com clareza: “A escrita é uma coisa e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si”. Aprendi isso com um Ponto de Cultura e com o casal Márcio Caíres, o Velho Griô, e Lilian Pacheco, educadora. A ação Griô tornou-se Ação Nacional do programa Cultura Viva, e com ela selecionamos mais de uma centena de experiências, das mais diversas.
“Todo Ponto de Cultura
Tem sua pedagogia
Juntos numa rede
Ação Griô que se recria
Programa Cultura Viva
Um Brasil que se cultiva
Colhendo sabedoria”.
Cada projeto selecionado promove a integração entre saber tradicional e o aprendizado na escola. Como apoio recebe bolsas (R$ 450 por mês) para até seis pessoas por Ponto, um mestre, os griôs e um griô aprendiz, que faz a ligação entre escola e mestres e a sistematização do processo educacional transmitido pela oralidade. Em 2009 são mais de 600 griôs espalhados por todo o Brasil. E não só afro-descendentes, pois a ideia não é restringir a ação a um único grupo étnico. Há griôs indígenas, descendentes de europeus, caiçaras, asiáticos. Todo o saber popular integrado numa ação. Mestres de capoeira, rezadeiras, baianas do acarajé, construtores de brinquedos, parteiras, pajés, cantadores, artesãos. Mestres que guardam nossa história de geração em geração. E que devem ser recolocados em seu papel, como tesouros vivos, pois “cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima” (mestre Hampáte Bâ). Essa é a Ação Griô.