Lugar de fala não enche barriga – ou porque representatividade recreativa não interessa
O mais importante é pensar políticas de emancipação de consciência étnica, de história e de pontuação de classe para que levemos às últimas consequências as políticas de reparação histórica, em seus aspectos pecuniários, políticos, simbólicas.
Publicado 21/12/2020 07:47 | Editado 21/12/2020 08:06
O lugar que o imaginário coletivo reservou para pessoas negras desde de sempre é uma sorte de reservatório onde se cozinha e forja a alteridade na forma como ela serve à estrutura injusta no Brasil: uma miscelânea de alteridade que é o outro, o oriente, o exótico e que, assim sendo, deve servir a todo uso que o senhor determinar; o trabalho forçado justificado pela sua animalidade, o tripudio, as violações e, claro, a graça e o entretenimento desse senhor.
Disso temos muito escrito, debatido e reforçado através dos séculos. Mas a ideia de que o negro é, mais que tudo, entretenimento, ganha corpo quando do encaminhamento das políticas públicas eugenistas e distensionadoras gestadas pelo Estado Novo, que arregimentou as sub-representações que viviam no imaginário popular acerca de como o negro poderia e deveria contribuir para e dentro da orquestração do estado gestor das desigualdades proposto pela política getulista. A partir daí, a fotografia do samba do crioulo doido animado a palmas pra maluco dançar tornou-se autorizada e regra. A catarse coletiva que o corpo e o molejo das e dos negros, sua cultura, religião e formas de resistência como catarse para a burguesia reprimida fora sancionada.
Foi assim também que a ideia de permitir palco para minorar as agruras das ruas, da precariedade e da favelização da vida veio a calhar a um estrato dirigente e a uma classe média atormentada e apaixonada, medrosa e conivente, a fim de apaziguar a consciência e, sobretudo, o medo da irrupção de conflitos organizados.
Recentemente, o ideário liberal escolheu, para compensar a mortandade e o etnocídio das políticas geriam como segurança pública, a extensão de projetos sociais e ONG’s que se multiplicavam nos territórios desassistidos pelo mesmo poder público que deveria horizontalizar o acesso à cidade, à educação formal de qualidade, ao mercado de trabalho e à renda, aliado a políticas de assistência social. O jovem negro, em geral, sonhou muito nos anos da década de 1990 em ser bailarina, percursionista, cantora, atriz, ator. Poucos foram, para ser otimista. Logicamente, a mídia corporativa decidiu narrar a projetização dos territórios de favela com sintaxe poética enquanto negligenciava, maquiava ou justificativa as incursões policiais diárias e o rastro de sangue que deixavam.
Houve, com todas as lacunas, descontinuidades e desproporções que sabemos, uma ruptura com esse modelo de gestão da pobreza e de uma das suas consequências desejadas pelos poderosos – a violência como resposta difusa –; qual seja: as políticas de renda direta e indiretamente incidentes sobre o rendimento do trabalho e a estruturação do acesso e da continuidade à educação com alargamento do ingresso no ensino superior público. Política imediatamente desmantelada pelo golpe de estado de 2016 e suas contrarreformas.
Insisto, sempre, que a relação entre raça e classe no Brasil é íntima, intricada e que, ao declararmos que não há capitalismo sem racismo, para manutenção de um de seus elementos de reprodução dinâmicos, que é a hiperexploração do trabalho e acumulação sem mediação de seus produtos, devemos ser responsáveis e ir até o fim dos cálculos cujos resultados atestam a declaração. Por isso, o mais importante é pensar políticas de emancipação de consciência étnica, de história e de pontuação de classe para que levemos às últimas consequências as políticas de reparação, em seus aspectos pecuniários, políticos, simbólicos.
Na sociedade da espetaculização, o que vemos é uma tentativa de reaquecimento e rearranjo dessa mesma peça de cabaré da década de 1930, quando a autorregulação da lacração pode gerar monetarização em um cenário onde o horizonte da estabilidade no trabalho e a sociedade do emprego e de suas proteções não está às vistas. Monetarização que pode ser em nível maior que antes e que pode trazer compensações simbólicas e de autogestão da vida, da voz e do espaço como nunca antes. É quando alguns bem-intencionados e iluminados querem alertar sobre as limitações do black card no capitalismo midiático, cheios de boa fé e da certeza de que nós, ingênuos, puros e mágicos não fomos capazes de entender o jogo do capital. Eles, pelo contrário, que não sabem de privações, que não participam do mercado de trabalho, que não lavam nem as louças, juram que vão nos ensinar sobre a perversidade e os engodos da sociedade de classes. Ocorre que nós nunca antes tivemos tata autonomia de gerência e, em alguns casos, decisão da pauta do nosso trabalho como agora, sob a égide do capitalismo do salve-se-quem-puder, dentro dos limites da gerência do capital e do racismo simbólico-midiático. Para alguns pouco, é verdade; ainda assim, grande contradição.
Alguns organismos de esquerda, setores do movimento social, por outro lado, encantam e vociferam, em oposição à exposição midiática – ou ao lado –, o empoderamento militante, o lugar de fala, a política. Hoje é já protocolo, procedimento padrão, ter minoria na mesa do debate mais concorrido sobre o tema mais urgente e atual, nos pilotis de sempre, onde ninguém comparece. Não se percebe que esse mesmo espaço concedido é a reatualização da catarse da burguesia que se projeta naquilo que ela não se permite ou não se encoraja. Aqui, o que o negro faz pela e para a branquidade é a linha de frente, é a fala acalorada, o xingamento esperado e o dedo na ferida. A mesma lógica de securitização daqueles que têm muito a perder pondo na linha de frente os que nada têm. Parecem não atentar – só parecem – que é na mesma base da espetaculização da vida e sua monetarização, na medida de graves da lacração, pois, que se enquadram muitas dessas manifestações.
Eu não vou deixar de repetir, por essa razão, que as relações entre raça e classe, sempre, em todos os lugares e principalmente no Brasil, carecem de acurácia, não apenas investigativa, mas também propositiva, militante. Em vez do lugar de fala, do palanque, da mesa do sindicato e do DCE, nós queremos emprego, remuneração, espaço no mercado de trabalho e poder de decisão sobre nossas carreiras, futuros e sobre a forma de emancipação que melhor nos diz respeito. Coletivamente, claro. Queremos discutir a política de retomada da proteção ao trabalho e de continuidade da qualificação até a revisão dos mecanismos de contratação, em todos os níveis, da reserva de vaga não como concessão, mas como justiça e direito para os que fizeram e dominam a expertise da produção no Brasil; como contraponto às reservas de mercado de trabalho para essa branquitude. Não precisamos, pra isso, nem de mesa ou abaixo-assinado. Aliás, há muito tempo e agora ainda mais, depois de tanta fala-live não remunerada, estamos cansados. Para tanto, dispensamos tribunas cheias que lugares de fala comoventes, já que isso passa a ser tudo. Queremos assistir e encaminhar o debate de privilégios na concessão das bolsas de pesquisa, na contratação dos postos mais altos, da transparência em relação aos projetos que remuneram melhor, que têm mais verbas, aos cargos de maior prestígios e melhor salário. Queremos ver se vocês entendem que não nos interessa a cessão do seu microfone se você continua ocupando o posto de trabalho que a sua rede de QI proveu; justo você que tem casa própria e até carro! De preferência, nós não queremos nem gastar nossa saliva com o mesmo reme-reme que não se ouve ou não se aprofunda; nós queremos emprego, qualidade de vida, realização profissional, emancipação e proteção coletiva.