Luiz Paulo, o amigo que se foi num ciclone

Ele era aquele amigo que nos falava as coisas mais desconcertantes sobre nós mesmos, sobre comportamentos espontâneos, digamos, saídos dos nossos ato impensados

Luiz Paulo em foto de 1980 | Foto: Arquivo pessoal

Nos boletins meteorológicos, quando há sinal grave de alerta, pode ser anunciado um ciclone com ventos acima de 100 km/h. Uma desgraça geral que se cumpre. Mas diferente dos fenômenos atmosféricos, há um tempo humano que também devasta, com transformações de dor em silêncio. Apesar de avisados, não notamos o que virá.

Penso em Luiz Paulo de Andrade Viana. Jamais imaginei que a nossa amizade sofresse mudanças. Mas o primeiro sinal foi do tempo em que nos conhecemos no Recife, em 1972, quando ele voltou do Chile. Não sei agora quem nos apresentou. Sei que conversamos sobre literatura, sobre escritores latino-americanos, que ele conhecia bem, e eu apenas Gabriel García Márquez e Pablo Neruda. Mas ele não os conhecia de citação de nomes. A sua leitura aparecia em comentários brilhantes, espirituosos, sobre os escritores lidos. A partir daí, e por ânimo comum de oposição à ditadura, nos conhecemos.

Escrevo agora e nada disse da sensibilidade de Luiz Paulo. Ele era aquele amigo que nos falava as coisas mais desconcertantes sobre nós mesmos, sobre comportamentos espontâneos, digamos, saídos dos nossos ato impensados. Lembro que ele censurou um amigo comum por haver falado em frente à esposa que detestava mulher burra. Ele era assim, notava o bárbaro no espontâneo. Escrevo agora e penso nas confissões que nos fizemos depois de uma bebedeira de vinho barato no bairro de Brasília Teimosa. Bebemos eu e ele um garrafão inteiro. Antes do vômito no quintal, eu lhe disse:

– Não aguento mais esta vida. Tenho que me matar.

E ele, bem sério:

– Eu também.

Depois daquele álcool, esquecemos das confissões verdadeiras, mas elas haviam estabelecido uma senha em nossa intimidade. E agora chego a um fato importante: para quem sofreu a ditadura, a confiança não era só política, ou de luta clandestina para alcançar a democracia. Não. A confiança era pessoal. Tinha que ser também pessoal. Antes de camaradas, devíamos ser amigos. Aliás, a amizade precedia. E assim foi. Quero dizer:

Depois daquele massacre da Granja São Bento contra seis militantes socialistas em 1973, Luiz Paulo foi o amigo que trouxe para mim em Brasília Teimosa a foto mais recente do Cabo Anselmo, com a cara do criminoso que era o agente duplo. Até então, para nós do Recife, o Cabo Anselmo era Daniel, o companheiro de Soledad Barrett. Pois Luiz Paulo, com uma foto em um monóculo, trouxe a imagem que circulou por todos os companheiros e camaradas do Brasil. Que ato de bravo em um tempo de terror de Estado!

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Mais adiante, com Luiz Paulo à frente, criamos o jornal A Xepa em 1974. Da equipe inicial, faziam parte Geraldo Sobreira, Graça Ferreira, o genial artista Ral e o grande Bione. Sob a ditadura Médici, o nosso jornal queria ser um Pasquim recifense. Mas o único humorista entre nós era mesmo Ral. A Xepa, no primeiro número, foi um jornal pago pelo então deputado federal Fernando Lyra, em segredo que não exigiu qualquer agradecimento em troca.

A Xepa | Foto: Arquivo pessoal

A militância daquela época era construída com atos de generosidade que se perderam na fase democrática. Seria o risco da morte imediata que nos unia? Luiz Paulo naquele tempo trabalhava nos Correios, em um cargo de nível médio, e para a maioria fodida de nós, ele era quem ganhava mais. Com o seu salário ele sempre esteve à disposição para nos socorrer em qualquer emergência, de um modo até constrangedor. Pelo menos no meu caso, que desempregado dava aula de matemática aos burguesinhos de Boa Viagem. E como eu não podia estar presente a algumas reuniões do jornal A Xepa, pois estava na função de professor particular, ele quis pagar minhas aulas. É claro, não pude aceitar.

Mais adiante, em 1976 ele abriu em sociedade com o livreiro Givaldo Gualberto a livraria Dom Quixote. Seria um lugar de livros para a esquerda recifense. Mas estava escrito no destino, a livraria não prosperou. Aqui, na bela logomarca desenhada por Ral:

Logo da livraria Dom Quixote | Foto: Arquivo Pessoal

A esta altura, cabe a pergunta: para uma pessoa tão criadora, onde estavam os sinais do ciclone que se abateu sobre a sua vida? Além da atmosfera do tempo da ditadura, havia em Luiz Paulo um, digamos, estranho, que raro notávamos. Quero dizer, às vezes de repente ele reagia amargo, ácido, a uma frase nossa. Lembro da noite em que estávamos num ônibus, e Luiz Paulo, um tanto franzino, não conseguia abrir a janela emperrada. Então eu lhe disse:

– É preciso a força de um homem!

E fui abrir a janela, que não cedeu. Ao que ele falou grave e sério:

– Continua a precisar da força de um homem!

Então eu, chateado por sua observação magoada, procurei explicar que estava apenas brincando, que eu não respeitava as pessoas pela força física. Mas a emenda, talvez, tenha sido pior que o soneto. O seu bom humor desapareceu do ônibus. Em outras oportunidades, num encontro de amigos, de repente ele se calava, fechava a cara, e não percebíamos o motivo. Então ele falava que ia embora, pois não estava bem. De saúde? De humor? De mágoa do coração? Não o sabíamos. Alguma piada de mau gosto, ou alguma frase infeliz devíamos ter falado. Quero dizer, hoje sei, Luiz Paulo possuía uma sensibilidade de cristal, ou melhor, de vidro, que nada tinha a ver com o Licenciado de vidro de Cervantes. Não. Ele era um homem feito de coração exposto, mas em silêncio. E não o notávamos.

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Esses eram os sinais do ciclone se avizinhando, da tempestade que víamos, mas julgávamos que não, pois seriam apenas indisposições passageiras. Jamais nos perguntamos em quê nós o havíamos ofendido. Jamais, nem mesmo, a maioria de nós teve com ele uma bebedeira de vinho para saber de que humanidade éramos feitos. Devemos tê-lo agredido mais de uma vez com nossas grosserias de costume, bem pernambucanas. Um ranço que sobrevive até entre os intelectuais do Recife. E assim, de repente, nós nos perdemos. Ele foi para São Paulo sem aviso, sem falar com ninguém. Sumiu. Depois, soubemos que ele estava fazendo carreira como redator publicitário, o que aumentou a nossa estreita compreensão. Um cara de esquerda a serviço do capitalismo? O ciclone humano então entrou em curso até o seu fim.

Nesta semana, por mensagem, a sua irmã Conceição de Andrade me falou:

“Em 2008 ele sofreu um infarto, e depois disso ficou com apenas 30 por cento da capacidade cardíaca, usando um implante “desfibrilador”. Aí, durante todo o ano, ele ficou muito debilitado. Não tinha resistência para trabalhar e não conseguiu fazer outro implante porque os pulmões não tinham resistência. Ele havia fumado muito a vida inteira que teve.

Fiz uma viagem em dezembro de 2008 para visitá-lo em São Paulo, mas não o encontrei mais consciente. Ele faleceu no dia dois de janeiro de 2009”.

Um obituário, conforme o estilo. informaria no alto do texto:

“Luiz Paulo de Andrade Viana

15/04/1949 – 02/01/2009”.

Mas não faz um obituário quem desenha a memória do sentimento. E por não saber concluir o texto, termino:

Caro amigo Luiz Paulo

Estava ouvindo Chico Buarque no mais recente domingo. Ao lembrar uma canção que os amigos ouvíamos na ditadura, de repente bateu uma bruta saudade de você. Então, pra compensar, escrevi estas linhas. Eu sei, imagino que você diria a sorrir: saudade não se compensa.

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