Mulheres e Meninas: o direito a uma vida sem violência

Em 7 de agosto de 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, resultado da luta de anos do movimento feminista pelos direitos das mulheres

Foi em 2006, 07 de agosto, ano e dia da promulgação da Lei Maria da Penha. Quinze anos após, vivemos as consequências das contradições próprias do sistema capitalista, patriarcal e racista, ainda. Morte, mutilação, lesões físicas e psicológicas sobre mulheres e meninas do Brasil.

A lei 11340, de 2006, tem sido considerada a legislação de referência em todo o mundo no combate à violência contra as mulheres. Essa violência não está restrita ao explícito âmbito físico ou sexual. Ela pode estar expressa também sob forma verbal, emocional ou psicológica, moral, institucional, política e até financeira e patrimonial. Essa Lei, que ostenta o nome de uma Maria, é um reconhecimento do Estado brasileiro de sua responsabilidade para com uma mulher vítima de terríveis violências praticadas por seu ex-companheiro.

Maria da Penha Maia Fernandes, agredida em seu próprio lar, muito sofreu, e quase morreu, mas resistiu. Sua energia, seu apego não só à vida dela mas também vislumbrando sofrimentos iguais, e até piores de outras mulheres, desaguaram em numerosos esforços que resultaram em dar voz e amparo legal a todas as mulheres do Brasil que potencialmente podem ser vitimadas por violências de gênero diversas.

Depois de levar um tiro do ex-marido, Maria da Penha ficou paraplégica. Sofreu outra tentativa de homicídio por choque elétrico, mas sobreviveu. A partir dali, ganhou notoriedade internacional depois de seu caso ter sido levado para a ONU e à OEA. Estes organismos internacionais concluíram que houve descaso de Estado contra os direitos de Maria da Penha. Isto se materializou em lei brasileira, anos mais tarde, sancionada pelo presidente Lula. Assinale-se o papel da deputada federal Jandira Feghali, relatora da lei no parlamento brasileiro, atendendo as necessidades de centenas de milhares de mulheres brasileiras anônimas vitimadas por esse tipo de violação dos direitos humanos.

Há que se anotar, ainda que de modo breve, uma recuperação histórica da luta dos movimentos feministas e de mulheres pela conquista de políticas públicas. Maria da Penha denunciou as agressões em 1983. Somente em 1985 foi instalada a primeira delegacia de mulheres em São Paulo e o primeiro conselho de direitos das mulheres (na época, chamado de conselho da condição feminina). Em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), integrado por membros da sociedade civil (a maioria feministas) e representantes do Estado, teve papel decisivo na inclusão de 80% das reivindicações feministas na nova Constituição de 1988.

Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

Embora a Lei Maria da Penha tenha sido conquistada em agosto de 2006, registra-se que o primeiro instrumento de defesa da mulher surgiu em 1974, em convenção da ONU. Este documento posicionou-se a favor da eliminação da violência. Em 1995, essa posição foi ratificada durante a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a Violência Contra a Mulher, a denominada Convenção de Belém do Pará, fio condutor para a elaboração da Lei Maria da Penha. Portanto, o movimento de mulheres que emergiu na década de 60 do século passado teve o mérito de introduzir na agenda política questões que estavam antes restritas à esfera, supostamente despolitizada e neutra, da vida privada, trazendo para o debate público temas como a sexualidade e o corpo feminino. Estes temas passaram a ser colocados como centrais na luta das mulheres pelo reconhecimento de sua condição de cidadãs e sujeitos de direitos, capazes de decidir sobre as próprias vidas. Assim foi que a conquista da Lei Maria da Penha deve ser salientada na trajetória deste movimento que vem desde as batalhas democráticas contra a ditadura militar brasileira, cerceador de liberdades.

Os movimentos de defesa dos direitos das mulheres juntaram-se em torno de um brado: “quem ama não mata, não machuca, não maltrata”. Bastante corrente, por muitas décadas, o ditado de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, como que justificando uma visão de que a violência não só era permitida como também que seria natural a mulher ser considerada propriedade privada do homem e ninguém tinha nada a ver com isso. Assim, o que ocorresse no âmbito privado devia permanecer encerrado entre quatro paredes. Reinava contra as mulheres o Estado repressor e patriarcal, onde as leis e as instituições reproduziam esta realidade.

Os anos 80 foram cenário de um amplo movimento de conquistas democráticas dos movimentos sociais no Brasil, incluindo o movimento feminista. Sindicatos e entidades populares fortaleceram-se, as suas demandas ganharam visibilidade pública, as aspirações por uma sociedade justa e igualitária expressaram-se na luta por direitos, que acabaram se consubstanciando na Constituição de 1988. Nesse cenário, no dia 06 de agosto nascia a União Brasileira de Mulheres, que se marca pelo seu slogan “Por um mundo de igualdade contra toda a opressão”, posicionando-se radicalmente contra qualquer leniência, contra discriminações e violências de gênero.

Nesse cenário de grandes conflitos assentados sobre uma milenar cultura machista e patriarcal, aumentam os protestos contra a violência doméstica e as teses da “legítima defesa da honra” (figura do Código Penal de 1940). Bem mais recentemente, consolidou-se como inconstitucional, em 10/03/21, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o parecer que exterminou o vetusto argumento do suposto legítimo “direito de defesa da honra”, alegado por homens que assassinam mulheres. Ficou caracterizado o crime de feminicídio ainda no governo de Dilma Rousseff, como ilegalidade motivada pelo fato de a vítima ser mulher. Ficou marcado na memória de nosso país a utilização dessa “legítima” defesa da honra no crime que vitimou Ângela Diniz, 32 anos, na década de 70, assassinada por quatro disparos do empresário Doca Street. Carlos Drummond de Andrade, o poeta mineiro, escreveu então: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”.

A lei do feminicídio, sancionada pela Presidenta Dilma, em 09 de março de 2015, tornou-se outro marco da luta das mulheres em nosso país. Foi justamente a primeira mulher eleita presidenta do Brasil que também sofreu um golpe político, com forte faceta misógina. Marcia Tiburi, filósofa, escreveu sobre “A máquina misógina e o fator Dilma Rousseff na política brasileira”. Mary Castro, em “O golpe de 2016 e a demonização de gênero”, destaca que, nos governos Dilma Rousseff, houve uma enorme ofensiva pelo Congresso Nacional contra as políticas de gênero, em especial com a criação do conceito absurdo de “ideologia de gênero”, desembocando na triste e tenebrosa realidade de nossos dias com a escalada autoritária e constantes manifestações misóginas do governo Bolsonaro, configurando uma situação de constantes e graves violações de direitos humanos.

Nesse momento de pandemia da COVID-19, com mais de 560 mil mortes, tem-se também números alarmantes de violência contra mulheres e crianças, por conta da coexistência forçada e prolongada, do estresse econômico e de temores sobre o coronavírus, no histórico contexto nacional de uma sociedade patriarcal, racista, androcêntrica e misógina. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual no ano de 2020. O perfil dessas mortes e quando utilizada arma de fogo aponta para uma maioria de mulheres negras (70,5%) e jovens até 29 anos (51,8%). Ainda destaca a pesquisa que o número de mortes de mulheres negras, que representam 7 a cada 10 mortes, avulta ainda mais o racismo estrutural, notadamente nesse governo fiador da violência. O estímulo ao ódio e a facilidade do armamento enfraquecem os mecanismos de combate à violência contra as mulheres, no quadro geral de machismo estrutural.

Há que continuar a luta em defesa da completa aplicação da Lei Maria da Penha, da ampliação dos juizados de violência, da rede de atenção às mulheres e de proteção às meninas, fortalecer nossa unidade para por fim a esse governo inimigo das mulheres e do povo, compreendendo a indissociabilidade da luta contra o capitalismo, a opressão patriarcal e o racismo, no cotidiano da vida das mulheres jovens, negras, indígenas, idosas, LGBTs, tendo firme a frase que, em briga de marido e mulher, salvamos a mulher. Ampliar nossa luta para que encontremos a perspectiva de sonhar e realizar, fortificando laços de generosidade, esperança e paixão pela vida é nosso desejo.


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