“Ninho vazio”: impasses da meia idade

A vida de um casal argentino, seus dilemas e buscas depois que os filhos crescem e deixam a casa é o tema deste filme do diretor Daniel Burman

Os instantes de redescoberta, quando parte da vida se foi na criação dos filhos e eles tomam outros rumos, menos os que se imaginava, pontuam o novo filme do argentino Daniel Burman. O escritor de meia idade, Leonardo (Oscar Martinez) custa a preencher o vazio que se estabelece depois que eles se foram, diferente da mulher Martha (Cecília Roth), que volta à faculdade para terminar o curso deixado pela metade, para cuidar dos filhos. Ele, em princípio, perambula com ela em encontros com amigos ou se enfurna em casa às voltas com tentativas de escrever um novo livro. Algo, no entanto, se foi; a vida como ele a vivia antes precisa de um novo impulso, e ele procura manter contato com os filhos entregues à sua própria construção cotidiana ou tenta criar novos liames com novos amigos, o que o leva a andar em círculos. Inclusive projetar relações amorosas com uma mulher idealizada, distante de um padrão atual, mais ao estilo das mostradas por François Truffaut (“Beijos Proibidos”) em seus filmes.


 



                    


É com estes pequenos incidentes que Burman (“Abraço Partido”/”Direito de Família”) constrói seu filme, detendo-se mais no interior dos personagens do que em sua relação com o que os cerca. Quando o faz é por certo tempo, sutilmente, como se isto não importasse para os rumos que a vida de Leonardo, principalmente, toma. É quando o vemos, por exemplo, na faculdade onde dá aulas, na tentativa de escrever anúncios publicitários e ao visitar o genro em Israel e, por uns instantes, flagra a metralhadora num canto da sala ou as conversas com o neurologista-pesquisador. No mais, ele, Leonardo permanece fechado em seu mundo, pouco importando com o fluxo da existência para além de seus impasses, que não são apenas os do desgarrar dos filhos, mas também o que acompanha suas conseqüências, iguais à crise da meia-idade e à distante relação com a mulher.


 


                   



Escritor não sabe como lidar com a nova vida


                  


 


 


Então as perdas se acumulam, tida menos como experiências, enriquecimento interno, mais como derrocada, compensada por ele com projeções interiores, busca de aventura amorosa, regresso à juventude perdida. No interfluxo entre as idéias do neorologista-pesquisador, que investiga as reações humanas aos sons, ele se permite evoluir para o caso com a jovem dentista Violeta (Eugênia Capizzano). Idealiza-a, corteja-a, leva-a a seu limitado habitat. Como se testasse as ideias do cientista, delas retirando seiva para continuar a viver. Diferente de Martha, entregue à nova vida, cheia de amigos da faculdade, de velhas relações de amizade, iguais às do cantor que a presenteia com seu CD, importando-se pouco se ele, Leonardo ainda não se reencontrou. Deixa-o entregue a seu espaço de demiurgo, onde talvez produza um novo livro, que o faça reviver.
                 



 


 


Há na forma de Burman registrar seus encontros e desencontros, dúvidas, medos e buscas, uma apropriação da estética publicitária. Principalmente na corrida por escadas, elevadores, escadas-rolantes, com personagens de seu imaginário surgindo para orientá-lo. Uso inusitado, pois se vale de uma estética cara aos anúncios publicitários, influenciados pelo vídeoclique, aos quais já se acostumaram os espectadores. Mas torna-se uma apropriação ao deixar para trás a longa contribuição do próprio cinema, a partir do que Richard Lester fez em seu filme com os Beatles, “Os Reis do Iê Iê Iê” ou, notadamente em “A Bossa da Conquista”. E mostra, sobretudo, o quanto as linguagens se interpenetram hoje, havendo assim pouca diferenciação entre o que é estética cinematográfica, publicitária e de videoclipe. Todos querem ser ligeiros, ainda que, no caso de “Ninho Vazio” haja um fluir mais lento.


              


 


  



Martha constrói novo espaço e cuida de si


               


 


 


Nas poucas sequencias em que estas interinfluências se estabelecem, elas demarcam claramente um campo. Quando vemos a face de Valéria no consultório dentário ou surgindo na rua ou mesmo na longa sequencia das escadas-rolantes, elevadores e corredores as tomadas são de baixo para cima, em primeiro plano, tornando-a imaginária, mera projeção da mente oscilante de Leonardo. São belos planos que contribuem para as projeções que ele se impõe. Nas demais sequencias, a câmera de Burman volta ao que se poderia chamar de normal, ainda que bem elaboradas. Essa diferenciação estética, de conteúdo, sem uma história propriamente, contribui para a leveza de “Ninho Vazio”; a aceitação de uma obra cujo tema não é dos mais palatáveis numa época de emoções cinematográficas ligeiras. Até os instantes de choque entre Leonardo e Martha não chegam ao impasse, explosão que o tornaria de elevada voltagem. Vai até certo nível e reflui tal uma sinfonia, após o climax.
             


 



O filme, no entanto, não é apenas de Leonardo, embora seja em sua maior parte nele centrado. Martha, personagem de Cecília Roth (“Tudo Sobre Minha Mãe”), integra o cast das mulheres modernas, livres para seguir sua vida da maneira que lhe interesse. Ela, que viveu para os filhos, não o faz agora para o marido. Cercada de amigos da faculdade ou não, encontra seu espaço sem precisar dele. Burman não se detém em seus impasses, usa-a apenas como contrapondo ao impasse do escritor de meia-idade. Ela, porém, tem seus instantes de irritação, de confronto com Leonardo, só não se faz de vítima ou de desamparada. Constrói seu espaço e vive em função dele. Talvez um sinal de que as mulheres hoje estão mais preparadas paras as bruscas e constantes mudanças operadas no pós-neoliberalismo. Burman, porém, não se prende a discursos sócio-políticos, interessa-se tão só pelas consequencias da relação a dois e da criação dos filhos.


              


 



Caso amoroso é saída encontrada por Leonardo


           


 


Um cinema miúdo se poderia dizer, sem qualquer olhar sobre a sociedade argentina. Nem por isto deixa de ser representativo de uma sociedade cansada de seus próprios impasses, acostumada a recomeçar e recomeçar e recomeçar, tal como se dá na América Latina depois de sucessivos golpes militares e de experiências com modelos econômicos falidos. “Ninho Vazio” se detém na classe média às voltas com problemas distantes daqueles vividos pelos trabalhadores fabris ou do setor de serviço, entregue, portanto, a seu próprio nível, eivado de idiossincrasias circunscritas a esse mesmo mundo. Serve assim ao público que vai ao cinema, propriamente ao de classe média, que pode se ver espelhada nos problemas vividos por Leonardo e Martha. Claramente o espectador masculino cujos impasses, na meia idade, poderão encontrar eco nas compensações de Leonardo ao tentar reviver tendo um caso com uma jovem dentista.



             



No entanto, são pequenas retribuições que se tem em 91 minutos de filme, aceitável em si. E não é mais do que isto, porém; por mais que Burman use recursos que contribuem, como já observado, para tornar sua obra ágil e agradável. Não que seja uma concessão, pequenos detalhes em sua obra dizem mais que o exposto. Quando Leonardo e Martha visitam a filha e o marido desta, Ianid, também escritor, em Israel há um clima de estranheza nos poucos momentos em que estão juntos.  Estão sempre inquietos, olhando pouco para si. A inquietação deriva, sem dúvida, da situação israelense, da vida que a filha e o marido levam, tendo de manter em casa a metralhadora, meio que escondida, mas à mão para uso imediato. O olhar que Leonardo lhe dedica, é suficiente para Burman dizer-se atento ao que acontece em Israel. Nada mais há para, além disto, em seu “Ninho Vazio”. Talvez seja isto mesmo, o casal Leonardo/Martha está preocupado em demasia com suas vicissitudes para deter-se, como devia, no mundo à sua volta, ainda que ela viva mais em função do entorno do que o marido. O que não difere em nada do comportamento corriqueiro nos dias atuais.


 


 


“Ninho Vazio” (“El Nido Vacio”). Drama. Argentina, Espanha, França, Itália. 2008. 91 minutos. Roteiro/direção: Daniel Burman. Elenco: Cecília Torh, Oscar Martinez, Inês Efron, Eugenia Cappizzano, Carlos Bermejo.


 


Prêmios: Ator (Oscar Martinez) e Fotografia no Festival Internacional de San Sebastian, Espanha, 2008.

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