No cinema, uma memória que busca o transcedente

O filme “Memória”, de Apichatpong Weerasethakul e o fechamento das livrarias Cultura e Saraiva

Filme "Memória" | Foto: Divulgação

Isto não é uma crítica de cinema, mas uma busca de reflexão em torno do filme “Memória”, produção do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, que está sendo exibido pela plataforma Mubi.

“Memória” é uma realização dentro de um cinema profissional, e não numa estrutura de simples amadorismo. Apichatpong faz cinema como profissional, entretanto mostra que tem total liberdade para conduzir sua produção dentro dos seus princípios, o que acontece com esse “Memória”. O filme tem atores profissionais, inclusive uma extraordinária interpretação da atriz hollywoodiana Tilda Swinton.

A estória tem aparência de simples, mas vai se complicando quando o orquidário se torna dominado por sons estranhos que vieram da montanha e não são explicados. Para criar esse clima que se torna transcendental, Apichatpong escolheu situar a representação do seu filme num país da América do Sul, na Colômbia e na capital Bogotá, e aproveitar a região montanhosa em torno dessa cidade. Nada de contar uma estória, mas tentar mostrar como uma mulher pode ser envolvida por questões que afinal de contas não teriam razão de estar presentes na sua vida. E assim deixamos de ter um filme simples para conquistar um clima de certa complexidade.

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Afinal, o cinema é uma arte ao mesmo tempo que é uma arte, servindo para divertir, também se encaminha, dependendo de quem o realiza, para uma estrutura de profundidade psicológica. E até cósmica.

“Memória” pode ser tomado como exemplo de um cinema profissional destes dias, pois é uma produção internacional lançada inicialmente no ano passado, que inclusive recebeu prêmio do júri no Festival de Cannes na França. Entretanto, não é subordinado aos esquemas das grandes empresas, tendo assim uma produção independente com pontos inclusive na Tailândia e no México.

O espectador, que desejar gozar bem da estrutura cinematográfica de “Memória”, deve vê-lo uma vez com legendas em português, e então vê-lo numa segunda vez sem legenda, tentando entender os diálogos em espanhol (e em alguns momentos em inglês). É preciso observar como os diálogos não se comportam simplesmente para permitir a comunicação. Eles servem principalmente para criar um clima especial em busca do cósmico.

O fato de ter sido produzido por um tailandês, e num país como a Colômbia, faz que ele fique especialmente próximo de um público como o brasileiro. Pelo menos, para as pessoas que se consideram cinéfilas. E assim sabem suportar um ritmo estranho. O filme não tem um só ritmo. Fica variando. E tem até certas paradas em escuridão. Desse modo, Apichatpong consegue criar ou desenvolver a sua própria linguagem.

Olinda 10, 08. 22

Uma crise aguda- o livro

Foto: Caio/Pexels

Estou vivendo hoje, ou melhor, convivendo com uma crise que para mim já era crise nos anos 60 do século passado. Naquela época, nos manifestos tropicalistas já falávamos no fim do livro, e para nós, eu, Jomard, Aristides, em nossas conversas e pensamentos pessoais, nem achávamos mesmo que era verdade, se isso acontecesse seria para anos e anos na frente. E a verdade é que estamos vivendo para ver. E o fato principal hoje é a quebra de duas cadeias de livrarias, a Cultura e a Saraiva, duas maiores. Não fui jornalista de só ler jornais. Minha base de escrita é para jornais, mas minha alimentação intelectual é muito mais do que o jornal, é o livro. Por isso tenho uma biblioteca pessoal de cerca de 6 mil livros. E durante cerca de sessenta anos vivo o drama do livro. Um dos momentos fortes para quem vive aqui no Recife foi o fechamento da Livro 7, onde me abasteci quase que principalmente de livros. Ganhei muitos livros de Tarcísio ou comprei com abatimento. Mas desde os anos 50 do século passado debati já essa questão do livro, isso principalmente com Jomard, pois fomos companheiros esses anos todos. É um longo caminho até hoje. Minha ligação não era só com o livro, com o texto, mas também intensamente com a imagem e com o som.

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Quantas perdas posso relacionar? O disco de 78 rotações, o LP, a fita cassete, o VHS (e desses terminei jogando fora mais de 2 mil), e os discos digitais que também estão inúteis? Eu sempre gravei neles filmes e filmes e já não têm mais sentido. Tem cerca de l mil gravados por mim. Pra quê? Assim, hoje não ouço praticamente música, pois não me adaptei ao sistema atual, mas vejo filmes, vejo jornais nas televisões, leio muitos livros em digital, leio jornais em digital. O dono da Companhia das Letras hoje dá uma entrevista na FSP para que as pessoas deem livros em papel de presente agora no Natal. Acho um tanto ridículo esse apelo. Quando fechou a Livro 7, ainda teve gente que achou que tinha sido por culpa de Tarcísio Pereira, por inoperância. E agora com essas duas cadeias de livrarias, o que se diz? Gente, não tem o que fazer. Tem de mudar o sistema. Minhas netinhas hoje com 5 ou 6 anos daqui a 10 anos vão ler de que forma, senão pelo digital, pois se hoje já fazem tudo, já veem o que querem ver pelos tablets? O mundo certamente poderia ser muito melhor se o trabalho dos cientistas fosse em proveito de toda a população. Só não é porque os donos do mundo utilizam a técnica para ganharem mais dinheiro. Não querem mudar. E querem dinheiro para quê? Para se comportarem como animais. Irracionais. Enfim, bye bye, livro.

Olinda, 04. 12. 2018

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