O outono norte-americano

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Arte: Rachel Orr, The Washington Post

Nesta semana, Joe Biden toma posse em circunstâncias totalmente atípicas para o rígido e centenário regime. Verdade que o estado norte-americano já tenha passado por pelo menos um momento de ruptura, quando norte e sul se lançaram em uma conflagração armada, mas esta é a primeira vez que se presencia uma tentativa de golpe. Autoproclamada como a maior e mais sólida democracia do mundo, é incontestável que os fatos ocorridos em Washington no último dia 6 colocaram os Estados Unidos em uma situação de humilhação internacional talvez só superada pela derrota na guerra no Vietnã.

Por mais que se tente caracterizar o ato de invasão do Capitólio como uma ação aloprada de grupos minoritários, não há como negar que foi uma ação articulada com intenção de aplicar um golpe de estado. Vários vazamentos de reuniões internas do núcleo trumpista de governo deixaram explícito tal objetivo. Até mesmo a decretação de estado de sítio, tendo como justificativa a pandemia, chegou-se a aventar. Tal decretação impediria a posse de Biden e possibilitaria a permanência de Trump no poder. Tal ação, assim como outras especuladas, só não se efetivaram porque não houve consenso no núcleo. Mesmo em sua equipe mais próxima, Trump ficou isolado. Restaram-lhe as tentativas de judicialização, tendo rejeitadas mais de 60 ações, e as tentativas de convencer governadores ou secretários de estado de unidades federativas governadas pelo Partido Republicano para que alterassem o resultado.

Frustradas as inciativas que poderiam alterar o resultado em todos os 50 estados e com Biden eleito pelo Colégio Eleitoral, sobrava a sessão de certificação dos resultados que ocorre no Congresso, sessão essa que, na prática, é mero rito homologatório, sem poder nenhum de alteração. Mesmo com o resultado já consolidado, vários grupos, com o estímulo de Trump, passaram a convocar uma marcha a Washington para o dia da referida sessão.

Aqui é necessário fazermos um parêntese e lembrar que, nos anos de 2010 e 2011, o mundo foi surpreendido por massivas manifestações na Tunísia e Egito, que se estenderiam para outros países árabes, cujo único objetivo era a desestabilização e, se possível, a derrocada dos governos instalados. Pela primeira vez, as redes sociais eram utilizadas com sucesso para desencadear movimentos massivos. Sem entrar no mérito do caráter democrático ou não dos governos contra os quais tais manifestações se voltaram, o fato é que, nesta última década, tais movimentos desestabilizadores ganharam o mundo, coincidentemente sempre se voltando contra governos desafetos dos Estados Unidos. Para citar alguns exemplos, podemos lembrar o golpe no Brasil, onde mero protesto juvenil contra o aumento de passagens de transporte acabou se transformando, em pouco tempo, em enormes manifestações que viriam a exigir o impeachment de Dilma Rousseff. O mesmo modelo de mobilização foi utilizado na Ucrânia e vem sendo usado sistematicamente em Hong Kong.

Fortes evidências apontam que o modelo de impulsionamento deste tipo de mobilização tenha tido o dedo de órgãos de inteligência norte-americanos, associados à grande imprensa ocidental, que passa a caracterizar essas manifestações como movimentos democráticos contra governos autoritários. Ao que tudo indica, o mesmo padrão foi adotado pelos trumpistas, arquitetado pelo núcleo mais próximo do Presidente. Provavelmente o troglodita imaginou mobilizar de 200 a 300 mil apoiadores e tomar de assalto a capital estadunidense, fechando o Congresso e se auto declarando o vencedor da eleição. Delírio? Com certeza, pois, se tal mobilização tivesse sido bem sucedida, reunindo o número de apoiadores esperado, teria sido uma carnificina sem precedentes. Mas parece que Trump não era o único que acreditava nessa alucinação. Bolsonaro possivelmente foi o último chefe de estado a reconhecer a vitória de Biden. Só o fez após a oficialização do resultado pelo Colégio Eleitoral e, ainda assim, manteve a narrativa de que houve fraude. À medida que se aproximava a reunião de certificação, o discurso do “Trump tupiniquim” passou a enfatizar ainda mais a versão de fraude. Eduardo Bolsonaro, acompanhado do “blogueiro” Allan dos Santos, estava nos Estados Unidos exatamente na semana de certificação. Em férias? Certamente não. Lá estava para não perder o momento de glória de seu grande ídolo, que escorraçaria de Washington a “escória esquerdista” dos democratas e se auto proclamaria vencedor das eleições.

O resultado da mobilização não foi o esperado. Estimativas díspares apontam um número de manifestantes que oscila de 2 a 15 mil, insuficiente para que se concretizasse o objetivo central, mas suficiente para provocar um estrago sem precedentes na imagem do regime norte-americano e que terá desdobramentos a curto e médio prazo. Trump não é mais um mero outsider. Ele e seus seguidores se transformaram em uma ameaça real ao sistema, algo inadmissível na cultura política norte-americana. Ainda que os republicanos consigam barrar o impeachment no Senado, enfrentará uma série de processos judiciais e dificilmente escapará da prisão. Os líderes da invasão ao Congresso estão sendo identificados e seguramente sofrerão duras penalizações. É pouco provável, no entanto, que tais ações venham a pacificar a política estadunidense.

Os movimentos anti-establishment não surgiram em decorrência de Trump. Trump, sim, é consequência destes movimentos que aparecem e se fortalecem devido à acelerada crise que se abate sobre a ainda maior economia mundial, agravada agora pela pandemia. A crise sanitária tomou proporções tais nos Estados Unidos, que mesmo com um processo agressivo de vacinação não será facilmente debelada, aprofundando ainda mais a crise econômica e o processo de desagregação social. A classe média tradicional, branca e conservadora norte-americana, esteio dos movimentos extremistas de direita, se sentirá ainda mais ameaçada, tendendo a uma agressividade ainda maior, lembrando que parcela dessa mesma classe média se encontra armada até os dentes.

Uma grande incógnita é o rumo que tomará o Partido Republicano diante de tal processo de radicalização. Trump ascendeu ao controle do partido e ao poder em decorrência de a agremiação ter se assumido como representante desse conservadorismo mais radical. Diante dos últimos acontecimentos e da provável anulação política do personagem Trump, o partido encontra-se visivelmente dividido. Mas a grande pergunta que fica é se irá se reinventar ou se esse conservadorismo irá prevalecer. Caso prevaleça o conservadorismo radical, o próprio partido passará a ser uma ameaça à estabilidade do regime que perdura por mais de dois séculos. Tal situação terá consequências imprevisíveis em um sistema bipartidário como o estadunidense.

As manifestações de desestabilização dos governos do Oriente Médio em 2010 e 2011 foram denominados pela imprensa ocidental como “Primavera Árabe”. Talvez possamos chamar os acontecimentos em Washington no último dia 6 como “Outono Norte-americano”, pois a perspectiva é de que seja sucedido por um longo e rigoroso inverno. O quadro de polarização aponta para uma tendência de fortes e agressivos movimentos de desestabilização da autoproclamada maior democracia do mundo.

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