Segunda viagem à China (1)

Tive a honra de, entre os dias 11 e 20 de janeiro do presente ano, realizar minha segunda viagem à República Popular da China. Fui à convite – juntamente com outros três membros – do Instituto Popular dos Assuntos Estrangeiros na qualidade de Assessor Eco

Em dez dias visitamos as cidades de Pequim, Shenzen, Chongqing e Xangai onde pudemos conversar e trocar opiniões com dirigentes ministeriais (Ministérios das Ferrovias e da Construção) e municipais (vice-prefeito de Chongqing, p. ex.), políticos de todos os níveis e agentes de administração empresariais (Baosteel em Xangai e Lifan em Chongqing, p. ex.)


 



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Estive na China pela primeira vez em 2004, mais precisamente entre os meses de março e junho do citado ano. Naquela oportunidade, os objetivos eram muito claros e poderiam se resumir na empirização de minha dissertação de mestrado. Foi uma grande oportunidade de conhecer e conviver com o dia-a-dia de Pequim, Xangai, Chongqing, Hohhot (capital da Região Autônoma da Mongólia Interior), Yichang (cidade que abriga a obra de Três Gargantas), Qinghai e Tianjin.


 


 


Na citada “primeira viagem”, acompanhado somente de uma mochila nas costas, máquina fotográfica, gravador e caderno, percorri mais de 10.000 km. de trem e outros 3.000 km. à barco. Conheci e conversei com técnicos, trabalhadores e afetados pelas então três maiores obras do mundo atual: a Usina Hidrelétrica de Três Gargantas, o Gasoduto Oeste-Leste (Xinjiang-Xangai, 4.221 km. de extensão) e a ferrovia Qinghai-Tibet (trajeto de 1.125 km., onde 80% da via ocorre a alturas superiores a 4.000m.).


 


Vale mencionar, que naquela oportunidade, o mesmo objetivo (decifrar o processo) valeu para a análise do desenvolvimento urbano de Pequim e Xangai. Conversas ainda foram mantidas com funcionários ministeriais, quatro membros do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh) e evidentemente com o chamado “povão”.


 


A “primeira viagem” foi o coroamento da escolha, em 1995 e sob a orientação do prof. Armen Mamigonian, da China como tema de projeto de iniciação científica. E também serviu de acúmulo pessoal que permitiu tirar o máximo proveito desta última viagem.


 


Abaixo segue relato geral da “segunda vez” (2).


 


(1) Chegamos a Pequim, no dia 11 de janeiro, após uma escala de seis horas em Paris. Foi importante passar pela “cidade luz” para perceber que a “luz” aos poucos vai sendo substituída por “trevas”. Não que Paris ainda não contenha uma certa aura iluminista. O problema é que a capital francesa, assim como outras metrópoles do centro do sistema, passa por um processo de pauperização da vida social: cabeça baixa, isolamento nos restaurantes, businas atormentando e negros e árabes isolados nas periferias. Aliás, se existe ainda algum sopro de vida por lá, deve-se à existência de negros e árabes na cidade. Gente trabalhadora, honesta e que ainda teima em abrir um sorriso a algum brasileiro pedindo informações na rua.


 


O fato de Robespierre ainda não ter uma estátua na cidade diz muita coisa.


 


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Pequim estava fria. Cerca de 10 graus centígrados e negativos tira e muito o ânimo de quem gosta de passear pela cidade. O tempo para passeios individuais era reservado à noite, pois a agenda de compromissos na cidade – na qual ficamos por três dias – não guardava “brechas” para grandes voltas. Nossa delegação ficou hospedada no melhor hotel da cidade: o Hotel Beijing, situada ao lado da grande Praça Tiananmen.


 


Mantivemos meetings nos ministérios das Ferrovias e no da Construção. Visitamos as obras em frenético andamento do sítio que abrigará os Jogos Olímpicos de 2008 (parte norte da cidade) e por fim nossa delegação foi recebida no Centro do Planejamento Urbano de Pequim.


 


Uma vista geral do movimento da cidade nos dá a percepção de que a sociedade chinesa – ao contrário da européia e norte-americana – explode de excitação. O anúncio dos 10,7% de crescimento econômico no ano de 2006 é expressão disso.


 


O governo cumpriu com antecedência a promessa de que até 2008 90% dos ônibus estariam movidos por gás natural e 70% dos táxis, idem. Entre a minha primeira visita e a última toda a frota de ônibus foi trocada, e mais de 60% dos táxis, também. Porém o trânsito continua muito tumultuado. A razão para isto pode ser encontrada na combinação de dois elementos: 1) a expansão tanto do crédito bancário, quanto da classe média – que tem no carro uma expressão de status – torna difícil o acompanhamento por parte do governo de construção de infra-estruturas numa velocidade que acompanhe tal ritmo de expansão e 2) como tudo é novidade na China, faz muita falta ainda um esquema de engenharia de tráfego e também de regras claras para o funcionamento do trânsito.


 


No que cerne a estrutura urbana, um visitante de segunda viagem não iria perceber grandes diferenças na cidade, ou melhor, em seu centro. Pequim é divida e cercada por seis anéis viários. Na área que vai do primeiro ao terceiro anel, as construções de prédios continua acelerada, porém a intervenção governamental somente pode-se sentir na periferia da cidade.


 


Para quem acredita que o mercado já domina todos os âmbitos da vida chinesa, é bom que se diga que os chineses mantém vigente o velho esquema soviético de planejamento urbano: linhas de transporte (metrôs e ônibus) chegam primeiro nas periferias que as populações, ao contrário do que ocorre em metrópoles capitalistas onde a expansão do transporte é fator de expulsão de populações inteiras (os pobres evidente) de seu local de moradia. Este movimento feito pela China evita o surgimento de rendas diferenciais que serve de renda complementar à especuladores imobiliários.


 


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Por último é importante salientar que cerca de 300 km. de linhas de metrô estão sendo construídos hoje em Pequim. Interessante perceber que a busca da “estabilidade monetária” e o “combate à inflação” no Brasil permitiu que o metrô da cidade de São Paulo expandisse somente 20 km. nos últimos dez anos. Que os chineses continuem nos dando exemplos que sirvam ao acúmulo de forças do campo nacional e popular no Brasil.


 



As ferrovias e o socialismo



Boa, muito boa, a conversa mantida no Ministério das Ferrovias. A importância deste setor pode ser medida pelo simples fato de um ministério (com toda burocracia inerente) a tal estar reservado para os assuntos deste setor. Abaixo seguem dados coletados em meio ao meeting.


 


Atualmente as ferrovias chinesas têm alcance de 75 mil quilômetros. Número que chegará a 77,5 mil ao final de 2007. No ano passado – sobre trilhos – foram transportadas 1, 28 bilhão de pessoas, ou seja, quase a população inteira da China. Em 2006, foram transportados 2,7 bilhões de toneladas de mercadorias, número que chegará a 3 bilhões de toneladas ao final do ano. Diariamente três milhões de pessoas utilizam trem e durante os três feriados nacionais (folga de uma semana no trabalho) este número chega a cinco milhões.


 


As ferrovias respondem por 35% dos transportes de passageiros e 53% dos transportes de carga. Vale salientar, que nos últimos 20 anos, além das ferrovias, as rodovias e auto-estradas e o transporte aéreo passaram a competir com as ferrovias no setor de transporte.


 


Ora, a melhoria das condições de vida do povo chinês, que por seu turno passou a ter o poder de escolha de viajar de trem, de carro ou até mesmo de avião, foi duramente sentida no setor ferroviário que quase entrou em colapso na segunda metade da década de 1990. Este quase colapso ocorreu por conta não somente de falta de condições de competir, mas principalmente pela ineficácia gerencial incapaz de gerir e incentivar processos de inovação, que permitissem o setor a deslanchar.


 


O setor voltou a ganhar fôlego com reformas de tipo “contratos de responsabilidade” com comprovado sucesso no setor rural. Desde então ao lado de parcelamento de tarefas entre o Estado e os trabalhadores do setor, por três vezes (1997, 1999 e 2001) consecutivas aumentou-se a velocidade dos trens que passaram a ter média de velocidade de – outrora 60 km/h. – para 120 km.


 


O salto de qualidade permitiu que o governo planejasse a construção de linhas de alta velocidade, partindo – evidentemente – da importação de tecnologias de empresas européias (Alston, Siemens, etc.). Os primeiros passos neste sentido foram dados na província sulista de Guangdong. Nesta província a instalação de linhas de alta velocidade foi concomitante com processo de absorção econômica de Hong-Kong pelo continente. Atualmente a ousadia consiste em diminuir a viagem entre Pequim e Xangai (1.400 km.) das 14 horas atuais para apenas cinco.


 


O governo chinês já anunciou que reúne acúmulo tecnológico e financeiro (US$ 25 bilhões) para o início das obras (início previsto para o início de 2008). Mais uma vez os chineses demonstram que sabe fazer e que aprenderam rápido com seus vizinhos (Japão e Coréia) na matéria de indigenizar tecnologia.


 


Porém, devemos partir do específico para o todo. O projeto ferroviário Pequim-Xangai é apenas parte de um todo que envolvem gastos de US$ 128 bilhões no setor para o 11º Plano Qüinqüenal. Um passo gigantesco será dado no objetivo de unificar o território econômico chinês com a construção de 2,5 mil novos quilômetros de trilhos por ano. Cerca de 60% das obras está direcionada para o oeste pobre do país, seja com o objetivo de unificar mercados regionais, seja para a já citada unificação territorial do país.


 


Enfim, um passo largo no rumo do que os chineses chamam de “socialismo com características chinesas”. Há quem duvide, daí fica a pergunta: seria possível um salto deste tipo e de longa duração, sem que o governo popular já não dominasse o ação espontânea das leis econômicas e utilizasse o caráter objetivo de tais leis ao proveito do próprio projeto em curso?


 


Mais: seria possível tal domínio sob as leis do desenvolvimento e consequentemente a “blindagem” ante a as crises cíclicas e típicas de economias em que a anarquia já tomou conta da produção, sem a utilização de mecanismos como o planejamento (herança do modo de produção asiático) e a propriedade social (socialismo científico) dos meios estratégicos dos meios de produção?


 


Engels já nos respondeu esta pergunta a pelo menos 150 anos atrás (3).


 



A questão do financiamento 



O ensejo para o pincelamento deste debate de fundo (financiamento) neste espaço deve-se a um ponto levantado durante nosso meeting no Ministério das Ferrovias (4).


 


Após o sr. Chen Juemin elencar os principais investimentos e o valor a ser investido pelo setor para o 11º Plano Qüinqüenal, achei por bem perguntar quais os canais de financiamento de tais investimentos, tendo em vista que o orçamento do ministério não comportava tal cifra, e que as concessões de serviço público à empresas públicas (5) por si só não seriam capazes de, com sua capacidade de busca de fundos para as obras, “fechar a conta” dos investimentos previstos e em andamento.


 


Ora, o que acontece, nas palavras do sr. Chen:


 


“Os ministérios responsáveis por gerir grandes empreendimentos tem cerca de 60% do orçamento dotado pelo Estado e pelos governos provinciais. A outra parte do orçamento cabe aos bancos emprestarem aos ministérios”.


Ora, parece ser algo no mínimo esdrúxulo para os economist


as do mainstream. Porém se percebermos que os empreendimentos – dadas as necessidades imediatas do país – tem altíssimo índice de liquidez, logo o investimento tem retorno garantido. O ressarcimento do crédito bancário pode variar de 15 a 20 anos com juros não revelados


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A meu ver, trata-se de um grande negócio aos bancos e uma novidade, uma peça de um “quebra-cabeças” chamado financiamento da produção na China.


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A problemática que envolve a questão do financiamento e seus mecanismos é de crucial importância. Muitas incompreensões surgem a partir de elaborações que contemplem a necessidade deste ou daquele país periférico se prover de um sistema de intermediação financeira. Não é incomum assistir a “pregação” que relaciona a idéia de capital financeiro com o de imperialismo. Sobre isto cabem as seguintes palavras de Ignácio Rangel e emitidas na introdução de seu clássico A Inflação Brasileira:


 


“A idéia de capital financeiro está conotada pejorativamente pela de imperialismo, porque, na verdade, o capital financeiro das potências dominantes é uma força de opressão. Não será fácil explicar que o nosso capital financeiro é uma força de libertação, do mesmo modo como o foi, no período transcurso o capital industrial.”


 


Ora, vale ainda dizer que para Lênin a economia monetária foi a maior invenção do capitalismo e como tal, deve ser utilizada pelo socialismo. Mais: para Lênin é no campo da economia que o socialismo deve mostrar sua superioridade ante o capitalismo. Por fim, após a derrota da revolução na Alemanha, o teórico e prático russo afirmava claramente que o comércio internacional passou a ser o novo front da luta-de-classes em âmbito internacional, e que neste campo (comércio) é que a batalha mundial entre os dois sistemas iria ser decidida. (6).


 


Abrindo parêntese, bom restituir uma observação puramente histórica: o comércio internacional na Idade Média não passava de uma mera variável de último plano tendo em vista que o comércio intra-feudos era de maior expressão. Já na era do colonialismo, o comércio internacional passa a ser variável central nas relações entre países e colônias. Deste fato pode-se vaticinar com segurança que as transições ocorridas na periferia estão intimamente ligadas a: 1) mudança nos pólos hegemônicos mundiais e 2) tais mudanças e suas transições intrínsecas enviam à periferia ondas políticas e econômicas com grande capacidade de provocar mudanças institucionais de fundo (relação entre crises comerciais, escassez de moedas fortes, substituição de importações e subida de novos pactos políticos ao poder central no Brasil, p. ex.).


 


Voltando, para tanto, seguindo as propostas de Lênin (estatização do comércio exterior) por ocasião da NEP, os chineses tem o comércio exterior sob controle do Estado, logo (tendo o comércio internacional como arma política) sujeito ao instituto do planejamento. Assim fica clara a intencionalidade chinesa de acúmulo de superávits com os países do centro do sistema. Tais superávits viabilizam uma orientação de sustentação de déficits comerciais com a periferia de forma que no plano estratégico, uma zona de isolamento ao imperialismo seja formada sob influência chinesa.


 


Utilizando um exemplo concreto, seria bom refletirmos acerca do que os cubanos, venezuelanos e demais países latino-americanos e africanos – que hoje se beneficiam do crescente poderio financeiro chinês – acham da China como parceiro comercial. E por fim fica uma opinião particular: a transição capitalismo x socialismo no mundo depende cada vez mais da capacidade chinesa de exportar capitais e da transformação do país – a partir de sua crescente capacidade financeira – de ser uma alternativa às agências gerenciadas pelo imperialismo, tais como o FMI e o Banco Mundial.


 


Enfim, o “capital financeiro” chinês é um fator de extrema importância nesta contenda que envolve, não simplesmente a transição capitalismo x socialismo em âmbito mundial, mas principalmente o futuro da humanidade. Não se trata de nenhum exagero ou expressão de fanatismo ou adesão a-crítica, mas sim uma constatação dos fatos concretos. Observemos as diferenças entre a forma de relação da China com os países africanos com a forma utilizada pelo velho colonialismo e o atual imperialismo.


 


(Continua)


 



Notas:


 


(1) Agradeço o esforço feito pelo Embaixador da República Popular da China no Brasil, Sr. Chen Duqing, com quem tive a honra de elaborar em conjunto um roteiro de viagem que permitisse a nossa delegação atingir seus objetivos. Lembrança justa é endereçada ao Dep. Federal Aldo Rebelo (PCdoB – SP), então presidente da Câmara dos Deputados, cujo mandato foi marcado – entre outras coisas – pelo estreitamento de laços e compromissos com a República Popular da China.


(2) Por questões de espaço achamos de melhor forma focaremos nos aspectos essenciais ao debate em curso sobre a China e seu caminho cuja viagem permitiu aprofundar e cristalizar opiniões.


(3) Em Anti-Düring, Engels – com substanciais argumentos – disserta acerca desta discussão.


(4) Fomos recebidos no citado ministério pelo Sr. Chen Juemin, chefe do Depto. de Cooperação do Ministério das Ferrovias, acompanhado de sua equipe.


(5) Desde a década de 1990 a China permite que empresas púbicas sejam formadas para o gerenciamento e busca de fundos para grandes empreendimentos, a mais famosa é a que gerencia a obra da Usina Hidrelétrica de Três Gargantas, obra esta cujas ações já estão há muito tempo cotizadas na Bolsa de Valores de Xangai. Trata-se de um caminho semelhante ao seguido pelo Brasil ao criar empresas como a Petrobrás e a Eletrobrás. E também vale observar que tal forma de propriedade foi concebida teórica e juridicamente pelo economista maranhense Ignácio Rangel, que em nossa humilde opinião tratou-se do mais completo intelectual brasileiro do século passado.


(6) Esta afirmação de Lênin pode ser encontrada em: LÊNIN, V.: “Reunião de ativistas da Organização de Moscou do PCR (b). Relatório Sobre as Concessões”. In, Obras Completas, t. 42, pp. 75-77. Sobre as opiniões de Lênin acerca da disputa econômica entre o socialismo e o capitalismo, indico a leitura de, simplesmente, todos os artigos escritos por ele entre 1920 e sua morte. Tais poderão ser encontrados no Volume Três de suas Obras Escolhidas.


 

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