Um táxi carioca

 Rotineiramente somos derrotados pelos estereótipos do dia a dia ou pelos preconceitos que a cultura dominante vende.

 

Dia destes ao final de um evento no Rio de Janeiro, por volta das 16 horas, como ainda tinha tempo até o horário do vôo para Foz do Iguaçu, resolvi caminhar. Não conheço o centro do Rio e me pus a andar, sem perguntas (o Rio é muito perigoso, sempre me dizem). Já estava cansado de caminhar, procurava o mar, mas sempre na direção errada. Fui parar no embarque da balsa para Niterói. Cansado, desisti, tomei um copo de chá gelado no bar ao lado da bilheteria da balsa e olhei em volta, vi um ponto de táxi próximo ao Tribunal de Justiça.

Havia dois táxis. O primeiro, um Santana, qualquer modelo antes de 2000, de longe percebi um rapaz negro ao volante, com camiseta regata, tatuagem a mostra e óculos escuro. O rapaz era o estereótipo de um típico carioca de filmeco norte americano ou pornochanchada brasileiro.

Havia outro táxi, alguns metros adiante, vidros escuros, um Vectra, pelo menos 10 anos mais novo. Achei mais agradável: o Rio é perigoso (martelava). Cheguei ao lado do táxi. Não, ele não veio trabalhar (o motorista do Vectra), tem aquelas pessoas esperando, me informou um homem que cuidava dos cones no ponto de táxi.

Sem dizer por que aquelas pessoas não pegavam o outro táxi, o rapaz me indicou o Santana parado. Ele trabalha conosco, tranquilizou-me diante do olhar inquiridor que lhe dirigi.

Meio inseguro, caminhei até o táxi. R$ 50,00 até o Galeão, informou o taxista. Concordei com o preço (melhor não negociar), pedi licença para sentar na frente. Quase me apavorei, além dos óculos escuros, da camiseta regata e da tatuagem a mostra, o motorista usava bermuda e calçava chinelos. Fiquei paralisado, pensando em desistir, enquanto o táxi se movia.

Ou pelo menos quase se movia. Seis da tarde o trânsito carioca, como em qualquer grande cidade do mundo, é um caos. O táxi se movimentava alguns metros e parava, parava, andava, parava. Puxei assunto (afinal, simpatia nunca é demais). Mostrou a tatuagem no braço, era em homenagem a filha (desmontei), quis saber se eu tinha filhos e me elogiou em seguida. O senhor não está nervoso? Ninguém fica calmo assim neste trânsito parado.

Alguns metros adiante, noticiou que precisava abastecer e questionou se haveria algum problema em parar no posto de combustível. Respondi que tinha tempo e estava tranquilo. Para minha surpresa, já no posto (onde colocaria gás), pediu para que eu pagasse a conta do abastecimento. Pensei em não aceitar, mas ele emendou dizendo que descontará da corrida.

Alegando necessidade de fugir da Avenida Brasil, saiu do posto e entrou numa comunidade, por debaixo de um túnel, argumentando cortaria caminho para a Linha Vermelha (o Rio é perigoso, me vem novamente imagens e falas repetidas). O motorista não entrou na esquina com placa sinalizada para a Linha Vermelha, tentou outro caminho e falando ao celular (novamente o estereótipo começa a vencer e penso ter entrado numa cilada, preciso começar a buscar uma saída).

De repente, desligando o celular gritou alto: que vacilo! Não peguei minha filha na casa da ex-sogra. Descobri então que a filha tem seis anos (Manuela), que mora com a ex-sogra e que também é pai de um menino de dois anos (já quase falando), que mora com ele e a atual mulher. A mãe da filha tinha 15 anos quando ela nascera e se separaram logo depois (enquanto dirigia, me levava para algum lugar que deve ser a Linha Vermelha, tentava convencer a avó a levar a menina até sua casa, duas, três, quatro ligações ao celular, tinha uma festa de aniversário, havia comprado roupa nova para a filha, nos intervalos me contava toda a história de seus casamentos, como sustentava a filha e outros detalhes).

Mudou a direção várias vezes (continuo assustado) até encontrar um acesso para a Linha Vermelha e rumamos para o aeroporto. No caminho me pediu conselhos sobre pensão alimentícia, como tratar a relação dele com a ex-mulher e cravou uma frase marcante: quero ser para meus filhos como meu pai é para mim (meu pai é muito bom para mim, repete).

Revelou então que mora num prédio de três andares (pai e mãe tem dez netos), são em quatro irmãos (uma menina), o apartamento térreo que ele reside foi doação do pai, assim como o táxi. No do meio moram os pais e no segundo andar o irmão com três filhos (é muita criança, deixam a vó louca). Outro irmão reside na mesma rua (no Bonsucesso). O pai, aposentado das docas, comprou a autonomia do táxi e ele não precisa pagar diária.

De repente, o telefonema redentor. A ex-sogra ligou e confirmou que levará a neta (que está em Duque de Caxias) até a Avenida Brasil, onde vai buscá-la assim que me deixar. Quase comemorei com ele, sua vitória (comprei até roupinha pra ela ir, repetia exultante).

Já chegando ao Galeão, fez uma última revelação. Contou que era lutador de jiu-jitsu até os 13 anos, quando começou a usar drogas, mas hoje, com 20 anos, está há três limpo (precisava cuidar da minha filha, que já tinha três anos quando parei).

No meu ponto final, sem perguntas, procurou um lugar para trocar o dinheiro e me devolveu o troco descontando o valor do combustível que havia antecipado no caminho. Pensei em não aceitar, mas era melhor cumprir o combinado. Perguntei se ele gostava de ler. Diante da resposta positiva, peguei um dos meus livros que trazia na mochila e lhe presenteie.

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