Claudio Daniel: Cinco poemas de Marli Fróes

Em seus versos, de extrema musicalidade e plasticidade, Cristo e Buda, Oxum e Pachamama dão as mãos a Rosa Luxemburgo e Che Guevara

Mineira de Montes Claros, Marli Fróes é uma poeta voltada à experiência do sagrado, presente no meio ambiente, na comunhão com todas as formas de vida, no amor e na luta política. Em seus versos, de extrema musicalidade e plasticidade, Cristo e Buda, Oxum e Pachamama dão as mãos a Rosa Luxemburgo e Che Guevara.

A autora publicou o livro de poemas Carnaverbo e o ensaio A Autoria, a Paixão e o Humano em Clarice Lispector (livro resultante da tese de doutorado), além de ter participado de várias antologias. O Prosa, Poesia e Arte publica, abaixo, cinco de seus poemas.

*

ADIAR O FIM DO MUNDO

Para Ailton Krenak

A vida deve ser fruição
dança cósmica!

os viventes; um sumo único, viscoso, elástico
– radicalmente vivos –
interconectados como a teia da aranha
que anuncia a verdade da fome e do alimento

saber de onde vem o pão
e quem planta a semente

honrar toda forma de vida
o abraço elemental
o espírito de Pachamama

misturar o nosso corpo com toda matéria bruta,
a matéria primeira da vida
na sua quentura nascente

vida: não um roteiro
de como ser eleito para o centro
ou lançado para a margem

É preciso coragem
para a travessia do deserto e do desastre

Não devorar o mundo,
mas aprender
com o verde-azul
da floresta,
reinventar o mundo.

*

TENSÃO

Superlua em escorpião
Buda Gautama dá as mãos a Cristo
no Himalaia
é o Festival de Wesak

Sete ervas,
Sete incensos,

Chegam ao Brasil

e vão para o terreiro do Pai José
jogar capoeira
que é um modo de varrer a sujeira,
o instintivo, a sombra.

Bebem jurema preta
banham em ervas

Buda, Cristo, Pai José chamam os líderes mundiais
seres da necropolítica,
– campo minado –

adentram a floresta
para o círculo das mulheres xamãs,

defumação, chás, força do rapé e da
ayahuasca

conhecer a força do sangue da mulher,
a roda da vida
conectar com a deusa, com Gaia
com o sol e com a lua

lavar a roupa suja:
pendências da escravidão,
desigualdade social,
distopias…

botar o varal de roupas de alecrim
à espera de quem nascerá
e de quem morrerá.

*

ENTRELUGARES OU O AMOR NATURAL

Para Sidnei Olívio

Não estar longe…
habitar a epiderme do mundo
ser sol, outras vezes chuva

grão em broto
a beijar a terra
foto-síntese-luz,

germinar em vários jardins:
amanhecer, florescer
todos os dias!

Ser a planta,
o pássaro- pólen
antera
pantera
gimnospermas

enovelar
em suas pernas

estourar em frutos
receber o orvalho
na pele pétalas

risco, arabescos
ramagens
sombras dentro das sombras,
camuflando panteras
tuas unhas
em perigos de cio…
acordando kundalini

*

SINCRÉTICA DOR OU AMOR EM ATOS

I

Em Diamantina,

a mulher adornada de terço acende a vela
rasga a multidão para tocar
na nossa senhora das candeias,

II

No passado

parturientes em quarentena de purificação
na lei mosaica, imolavam, diante do sumo-sacerdote,
cordeiro, pombas ou rolas

III

No livro sagrado

Conta-se que, em presença de Simeão
apresentaram-se Maria e José

Da purificação da virgem
nasce a festa da candelária

IV

Além mar

padroeira das Ilhas Canárias
 de Portugal atravessa o oceano
em terras ameríndias arrasta a procissão de velas

nossa senhora da luz, das candeias, candelária, invocada pelos cegos
passeia pelo Sermão de Vieira

V

No Rio de Janeiro

os adolescentes dormiram para sempre
em frente à Igreja da Candelária
Qual luz, Nossa Senhora !

VI

Do mar

vem Yemanjá e dá as mãos à Nossa Senhora da Candelária
A virgem beija um a um em pétalas de um amor
inalcançado pelos homens.

VII –

De Aruanda

Oxum canta, em Iorubá, um lamento nunca ouvido
Coloca seus adornos na fronte dos meninos anderson, valdevino, gambazinho, leandro, paulo josé e marcos.

Oxum chora uma cachoeira
e os meninos veem
brincam nas águas
esquecidos da vida e da morte.

*

RITMO

  jazz na esquina
 jaz o tempo que é morto
as notas nunca igualmente repetidas:
reverberadas em algum lugar.

sem jungle  otimista ou serenata
que atravesse a manhã
recolho os meus pertences
que no fundo não são meus

arrasto a barra da saia
 que varre o chão
– memória de um mar ancestral –
lembrando… nada na vida é para sempre

tudo  metamorfoseia noutra vida:
arquivos, marcas, necroses,
pinturas rupestres, seres calcificados
memórias a dizer
que a vida   é sempre contínua.

ainda que a orquestra seja interrompida
a música se consubstancia
em algum lugar inescapável…

sigamos varrendo o chão,
 recolhendo o sangue
 e as flores dos nossos antepassados…

Autor