“Informar que o tribalismo é um dos principais aspectos do romance Mayombe é o mesmo que confundir o acessório com o essencial. Ou pior, se comparamos bem mal, seria ver na Guerra de Canudos uma antecipação da Revolta contra Canudos de plástico em São Paulo. Mas, brincadeiras à parte, deve ser dito que Mayombe é um dos raros, se não o único romance sobre a guerrilha de Angola vista desde o seu íntimo.”
Por Urariano Mota*
Publicado 04/07/2019 22:34 | Editado 13/12/2019 03:29
Se o leitor consultar o que existe publicado sobre o romance Mayombe na internet, verá que em mais de um lugar se destaca no livro o tribalismo. Chegam a escrever:
Ora, diante de tal informação, poderia ser dito que não só angolanos deixavam de falar português com fluência…. Entre outras coisas, informar que o tribalismo é um dos principais aspectos do romance Mayombe é o mesmo que confundir o acessório com o essencial. Ou pior, se comparamos bem mal, seria ver na Guerra de Canudos uma antecipação da Revolta contra Canudos de plástico em São Paulo. Mas, brincadeiras à parte, deve ser dito que Mayombe é um dos raros, se não o único romance sobre a guerrilha de Angola vista desde o seu íntimo.
O seu autor, Pepetela, ou Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, ele próprio um guerrilheiro da luta em Angola, explicou a sua gênese:
Outro objetivo é que daqui a uns tempos não haverá pessoas que tenham vivido a situação colonial por ‘dentro’. E toda a nova geração deverá ouvir falar, apenas. Há de haver textos de história sobre o que era o colonialismo, o que era a mentalidade do colono, etc., mas forçosamente o texto de história, é uma coisa fria… e as pessoas acabam por imaginar o que seria, mas não compreender profundamente, e aí é o papel do romance, fundamental, para a nova geração conseguir ‘viver’ um pouco o que era a vida antes. Aí há também uma preocupação de registar para a história. E há pouca gente que escreve, que tenha tido essa vivência. E aí eu pensei, eu tenho essa vivência da sociedade colonial, eu tenho a vivência dos que se opuseram à sociedade colonial”
Lembro que, como um dever de escritor, entre outras obras li pela primeira vez Mayombe ao pesquisar para o meu romance A Mais Longa Duração da Juventude. Há quatro anos, dele guardei a percepção de um bom livro, de uma narração honesta sobre a guerrilha angolana. No entanto, na minha sede e exigência para o que eu gostaria de ver, pude notar então, em alguns personagens, o que chamo de incerteza da verossimilhança. Nesta semana, a partir de uma encomenda de André Cintra, editor cultural do Portal Vermelho, reli Mayombe. E de passagem publico a seguir o que antes guardei.
No romance, há falas que não fazem um diálogo do cotidiano. Elas são discursos mais para o teatro que para a vida real. Em outras, ocorre tanta explicação que se torna aula didática, o que não é próprio do natural das gentes. Isso quer dizer, o lugar do narrador procura se realizar na fala entre pessoas, e desse modo cai na fala que não é da natureza, mas falta de natureza. Como assim? Olhem por favor:
A isso recebemos uma fala de resposta de psicanalista:
São vozes bonitas, sem dúvida. Mas se o leitor souber que essas falas se dão num ambiente de fome e no meio da selva sob tensão de ataque do inimigo, poderá compreender o incômodo que fica na gente para semelhante discurso. Entenda-se. Não se põem em dúvida a qualidade e a justeza de tal reflexão psicanalítica. Mas elas não deveriam, penso, ser incorporadas pelo personagem que a diz, nesse lugar. Mais grave, como se ele tivesse vida cultural, formação curtida e amadurecida à altura. Ou seja, esses estalos de gênio nunca vêm do nada, por acaso. Lembro a propósito uma restrição do crítico Álvaro Lins a São Bernardo, do clássico Graciliano Ramos. Segundo Lins, o personagem Paulo Honório não poderia ter o nível de pensamento que aparece nas páginas do romance. Melhor solução seria o próprio autor assumir o lugar do personagem, numa narração em terceira pessoa.
Mas essas breves e discutíveis restrições longe ficam de retirar do romance o seu melhor. Para mim, a experiência fundamental do romance, que mostra a intimidade do escritor com a guerrilha de Angola, o lugar insubstituível de Pepetela, vem das páginas de ação. Da terceira pessoa do narrador recebemos páginas como esta:
Os primeiros soldados apareceram na curva da estrada. Depois, aos poucos, o resto da companhia. Vinham sem ordem, aos grupos, desatentos, as armas sobre o ombro. O grupo da frente entrou na zona de morte, avançou até passar pelo Comandante. Sem Medo ia contando os soldados inimigos. Contou até setenta. Os guerrilheiros esperavam a rajada do Comandante, sinal de abrir fogo. A vanguarda inimiga aproximava-se do último guerrilheiro, enquanto os da cauda entravam na emboscada.
Está lindo, entraram que nem patinhos! — pensou Sem Medo. E disparou, visando os que estavam à sua frente, a menos de quatro metros. Imediatamente crepitaram as pépéchas (pistolas-metralhadoras soviéticas) com o seu barulho de máquina de costura. Dois segundos depois, Milagre erguia-se e bazucava sabiamente o grupo avançado. Os soldados, apanhados na mais completa surpresa, só placaram ao solo ou cambalhotaram, quando já muitos tinham caído. Os gemidos confundiam-se com o cacarejar das pépéchas e o estrondo das granadas. Finalmente, os primeiros soldados começaram timidamente a responder ao fogo, para permitir que os que estavam na estrada pudessem ganhar a mata protetora.
Sem Medo mudou o carregador, no momento em que apercebeu o soldado à sua frente, deitado na borda da estrada, tentando febrilmente desencravar a culatra da G3. O soldado tinha-o visto, mas a arma encravara. Sem Medo apontou a AKA (metralhadora soviética). O soldado era um miúdo aterrorizado à sua frente, a uns quatro metros, as mãos fincadas na culatra que não safava a bala usada. Os dois sabiam o que se ia passar. Necessariamente, como qualquer tragédia. A bala de Sem Medo abriu um buraquinho na testa do rapaz e o olhar aterrorizado desapareceu. Necessariamente, sem que qualquer dos dois pensasse na possibilidade contrária”.
Páginas assim são raras em qualquer literatura. Mas o romance Mayombe, é claro, não possui a sua melhor fama das cenas de combate na selva. No livro, se insinua uma poderosa reflexão cujas páginas não poderiam prever o seu desenvolvimento.
Nos primeiros tempos da vitória da luta contra a colonização, sob Agostinho Neto, os quadros revolucionários dirigiam. No entanto, para nossa frustração, sabemos das voltas que uma revolução dá. Penso, ao fim, que a guerrilha foi, ela própria, uma antecipação da história. Mas vem a pergunta: e depois, como construir a sociedade que a luta na selva inaugurou? Essa é uma questão que o romance, nenhum romance pode responder no momento em que está recente o fato. Só a visão que narra o passado responderá. No calor do ano de 1971 ainda não era possível.
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.