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Urariano Mota: Mayombe, o romance da guerrilha angolana 

“Informar que o tribalismo é um dos principais aspectos do romance Mayombe é o mesmo que confundir o acessório com o essencial. Ou pior, se comparamos bem mal, seria ver na Guerra de Canudos uma antecipação da Revolta contra Canudos de plástico em São Paulo. Mas, brincadeiras à parte, deve ser dito que Mayombe é um dos raros, se não o único romance sobre a guerrilha de Angola vista desde o seu íntimo.”

Por Urariano Mota*

Mayombe

Se o leitor consultar o que existe publicado sobre o romance Mayombe na internet, verá que em mais de um lugar se destaca no livro o tribalismo. Chegam a escrever:

“Um dos principais aspectos do Mayombe é o tribalismo. A Angola era composta por inúmeras tribos que foram subjugadas e unidas sobre o mando de Portugal em um único país. Diversas línguas compunham o leque linguístico de Angola. O português era a língua oficial que, de certo modo, unia todos, porém, ela não era a língua materna dos falantes e nem todos falavam português fluentemente…”

Ora, diante de tal informação, poderia ser dito que não só angolanos deixavam de falar português com fluência…. Entre outras coisas, informar que o tribalismo é um dos principais aspectos do romance Mayombe é o mesmo que confundir o acessório com o essencial. Ou pior, se comparamos bem mal, seria ver na Guerra de Canudos uma antecipação da Revolta contra Canudos de plástico em São Paulo. Mas, brincadeiras à parte, deve ser dito que Mayombe é um dos raros, se não o único romance sobre a guerrilha de Angola vista desde o seu íntimo.

O seu autor, Pepetela, ou Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, ele próprio um guerrilheiro da luta em Angola, explicou a sua gênese:

"Mayombe apareceu de um comunicado de guerra. Nós fizemos uma operação militar e eu era o responsável por mandar as informações, redigir o comunicado, como tinha passado a operação e enviar depois para o nosso departamento de informação, que veiculava no rádio, no jornal. Eu escrevi aquela operação com que o livro começa e que é real…

Outro objetivo é que daqui a uns tempos não haverá pessoas que tenham vivido a situação colonial por ‘dentro’. E toda a nova geração deverá ouvir falar, apenas. Há de haver textos de história sobre o que era o colonialismo, o que era a mentalidade do colono, etc., mas forçosamente o texto de história, é uma coisa fria… e as pessoas acabam por imaginar o que seria, mas não compreender profundamente, e aí é o papel do romance, fundamental, para a nova geração conseguir ‘viver’ um pouco o que era a vida antes. Aí há também uma preocupação de registar para a história. E há pouca gente que escreve, que tenha tido essa vivência. E aí eu pensei, eu tenho essa vivência da sociedade colonial, eu tenho a vivência dos que se opuseram à sociedade colonial”

Lembro que, como um dever de escritor, entre outras obras li pela primeira vez Mayombe ao pesquisar para o meu romance A Mais Longa Duração da Juventude. Há quatro anos, dele guardei a percepção de um bom livro, de uma narração honesta sobre a guerrilha angolana. No entanto, na minha sede e exigência para o que eu gostaria de ver, pude notar então, em alguns personagens, o que chamo de incerteza da verossimilhança. Nesta semana, a partir de uma encomenda de André Cintra, editor cultural do Portal Vermelho, reli Mayombe. E de passagem publico a seguir o que antes guardei.


Caricatura do escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela
 

No romance, há falas que não fazem um diálogo do cotidiano. Elas são discursos mais para o teatro que para a vida real. Em outras, ocorre tanta explicação que se torna aula didática, o que não é próprio do natural das gentes. Isso quer dizer, o lugar do narrador procura se realizar na fala entre pessoas, e desse modo cai na fala que não é da natureza, mas falta de natureza. Como assim? Olhem por favor:

“- Mostrar? Um mestiço mostrar medo? Já viste o que daria? Tenho procurado sempre dominar-me, vencer-me… compreendes? É como se eu fosse dois: um que tem medo, sempre medo, e um outro que se oferece sempre para as missões arriscadas, que apresenta constantemente uma vontade de ferro … Há um que tem vontade de chorar, de ficar no caminho, porque o joelho dói, e outro que diz que não é nada, que pode continuar. Porque há os outros! Sei que, sozinho, sou um covarde, seria incapaz de ter um comportamento de homem. Mas quando os outros estão lá, a controlar-me, a espiar-me as reações, a ver se dou um passo em falso para então mostrarem todo o seu racismo, a segunda pessoa que há em mim predomina e leva-me a dizer o que não quero, a ser audaz, mesmo demasiado, porque não posso recuar … é duro !”

A isso recebemos uma fala de resposta de psicanalista:

“– Há coisas que uma pessoa esconde, esconde, e que é difícil contar. Mas, quando se conta, pronto, tudo nos aparece mais claro e sentimo-nos livres.”.

São vozes bonitas, sem dúvida. Mas se o leitor souber que essas falas se dão num ambiente de fome e no meio da selva sob tensão de ataque do inimigo, poderá compreender o incômodo que fica na gente para semelhante discurso. Entenda-se. Não se põem em dúvida a qualidade e a justeza de tal reflexão psicanalítica. Mas elas não deveriam, penso, ser incorporadas pelo personagem que a diz, nesse lugar. Mais grave, como se ele tivesse vida cultural, formação curtida e amadurecida à altura. Ou seja, esses estalos de gênio nunca vêm do nada, por acaso. Lembro a propósito uma restrição do crítico Álvaro Lins a São Bernardo, do clássico Graciliano Ramos. Segundo Lins, o personagem Paulo Honório não poderia ter o nível de pensamento que aparece nas páginas do romance. Melhor solução seria o próprio autor assumir o lugar do personagem, numa narração em terceira pessoa.


Vista aérea de Mayombe, a segunda maior floresta tropical do Mundo e cenário do romance de Pepetela 
 

Mas essas breves e discutíveis restrições longe ficam de retirar do romance o seu melhor. Para mim, a experiência fundamental do romance, que mostra a intimidade do escritor com a guerrilha de Angola, o lugar insubstituível de Pepetela, vem das páginas de ação. Da terceira pessoa do narrador recebemos páginas como esta:

“A notícia correu rapidamente pelos guerrilheiros. Momentos depois, ouviram as primeiras vozes. Os tugas (soldados portugueses) vinham alegres por regressarem ao quartel, barulhentos, despreocupados, convencidos de que os guerrilheiros já estavam no Congo. Sem Medo percebeu mesmo a alusão gritada dum soldado aos hábitos da irmã de outro. O tuga é sempre o mesmo, em todas as circunstâncias, pensou. Será o que fala que tombará com a minha rajada, ou o outro, cuja irmã foi ofendida?

Os primeiros soldados apareceram na curva da estrada. Depois, aos poucos, o resto da companhia. Vinham sem ordem, aos grupos, desatentos, as armas sobre o ombro. O grupo da frente entrou na zona de morte, avançou até passar pelo Comandante. Sem Medo ia contando os soldados inimigos. Contou até setenta. Os guerrilheiros esperavam a rajada do Comandante, sinal de abrir fogo. A vanguarda inimiga aproximava-se do último guerrilheiro, enquanto os da cauda entravam na emboscada.

Está lindo, entraram que nem patinhos! — pensou Sem Medo. E disparou, visando os que estavam à sua frente, a menos de quatro metros. Imediatamente crepitaram as pépéchas (pistolas-metralhadoras soviéticas) com o seu barulho de máquina de costura. Dois segundos depois, Milagre erguia-se e bazucava sabiamente o grupo avançado. Os soldados, apanhados na mais completa surpresa, só placaram ao solo ou cambalhotaram, quando já muitos tinham caído. Os gemidos confundiam-se com o cacarejar das pépéchas e o estrondo das granadas. Finalmente, os primeiros soldados começaram timidamente a responder ao fogo, para permitir que os que estavam na estrada pudessem ganhar a mata protetora.

Sem Medo mudou o carregador, no momento em que apercebeu o soldado à sua frente, deitado na borda da estrada, tentando febrilmente desencravar a culatra da G3. O soldado tinha-o visto, mas a arma encravara. Sem Medo apontou a AKA (metralhadora soviética). O soldado era um miúdo aterrorizado à sua frente, a uns quatro metros, as mãos fincadas na culatra que não safava a bala usada. Os dois sabiam o que se ia passar. Necessariamente, como qualquer tragédia. A bala de Sem Medo abriu um buraquinho na testa do rapaz e o olhar aterrorizado desapareceu. Necessariamente, sem que qualquer dos dois pensasse na possibilidade contrária”.


Os personagens de Mayombe, na visão da artista digital Ana Nai
 

Páginas assim são raras em qualquer literatura. Mas o romance Mayombe, é claro, não possui a sua melhor fama das cenas de combate na selva. No livro, se insinua uma poderosa reflexão cujas páginas não poderiam prever o seu desenvolvimento.

“- É isso que queres? Que depois da independência haja golpes de Estado todos os anos, como nos outros países africanos? Precisamos de ter um exército bem politizado, com quadros saídos da luta da libertação. Como vamos fazer, se os guerrilheiros não querem estudar para serem quadros?”.

Nos primeiros tempos da vitória da luta contra a colonização, sob Agostinho Neto, os quadros revolucionários dirigiam. No entanto, para nossa frustração, sabemos das voltas que uma revolução dá. Penso, ao fim, que a guerrilha foi, ela própria, uma antecipação da história. Mas vem a pergunta: e depois, como construir a sociedade que a luta na selva inaugurou? Essa é uma questão que o romance, nenhum romance pode responder no momento em que está recente o fato. Só a visão que narra o passado responderá. No calor do ano de 1971 ainda não era possível.

* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.