O cardápio de avestruz de Paulo Guedes e os Marshall ingleses

O ministro da Economia ancora seu projeto na redução da taxa de juros, associada a um custo social que o povo não tem condições de suportar.

As sucessivas reduções da taxa básica de juros pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) desafiam a lógica que interpreta a relação entre política monetária e atividade produtiva. Com a Taxa Selic em 4,25%% ao ano, derrubada nesta quarta-feira (5) em 0,25%, por essa lógica haveria grande estímulo para a recuperação da economia. Não é o que vem acontecendo.

Juros baixos estimulam, sim, a atividade produtiva, mas são necessárias outras variáveis. Os juros médios praticados pelos bancos, por exemplo, caíram pouco, e o resultado é que o spread bancário – medida que calcula a diferença entre quanto o banco paga para captar dinheiro e o quanto ganha para emprestar – encerrou 2019 ligeiramente maior que em 2018.

Sem fontes de financiamentos públicos – o BNDES, a CEF e o Banco do Brasil estão amordaçados –, quem precisa de recursos não tem onde se socorrer. E os bancos privados, ressabiados com as instabilidades do governo Bolsonaro, também não se interessam por entrar nessa seara. Preferem seguir ganhando fortunas na farra do spread e do circuito financeiro.

Não é de hoje que os lucros dos bancos atingiram dimensões de escândalo. Dinheiro que poderia irrigar a economia entra nos cofres das instituições financeiras de uma forma inaceitável. Uma comparação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o custo do crédito no Brasil e em outros países, realizada no final do segundo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, demonstrou que as taxas brasileiras são bem mais altas do que as cobradas no exterior.

O estudo indica que o empréstimo para pessoa física no Brasil chega a custar dez vezes mais do que em uma agência europeia do mesmo banco. No caso de pessoa jurídica, o brasileiro tem que pagar quatro vezes pelo empréstimo em relação ao valor cobrado nos Estados Unidos e na chamada Zona do Euro.

O mantra do ministro

O viés de baixa acentuada da Selic se deve ao controle da inflação pelo arrocho no poder de compra da massa salarial, sobretudo com o desemprego em larga escala. A velha técnica de usar a alavanca dos juros altos para frear o consumo, e, consequentemente, a atividade produtiva, tornou-se desnecessária nesse cenário de letargia da economia.  

Mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem se valido desse viés para trombetear os “acertos” da sua política econômica. Ela, de fato, tem impacto na rolagem da dívida pública, hoje situada em 75,8% do PIB. Segundo o ministro, simulações indicam que as despesas com juros vão cair R$ 120 bilhões por ano, hoje em torno de R$ 400 bilhões. “Isso é extraordinário, libertador”, disse ele.

Sua tese é de que ao dar estabilidade ao pagamento da rolagem da dívida, os investidores – a turma da bufunfa, os especuladores do circuito financeiro – observam mais a capacidade do Estado de honrar seus compromissos com o rentismo, o que estimularia a entrada no país de investimentos privados. “Passamos anos expulsando investimento privado, agora estamos convocando eles”, afirma.

Para ele, o governo precisa, impreterivelmente, controlar os gastos do Estado e manter o juro estável, estabelecendo a relação dívida pública estabilizada-investimento privado. “Isso faz uma diferença brutal para a economia”, garante. Para se chegar a essa meta, contudo, sua receita é um autêntico cardápio de avestruz.

O mantra do ministro diz que o Estado gasta muito e mal, consequência do entendimento do establishment de que “colocar os juros na lua é natural”. Ele lista três focos de “gastos” que precisam ser atacados – a sua conhecida tese de que o Brasil é uma baleia arpoada que parou de se mover – para atingir o objetivo de zerar o déficit primário – os gastos e investimentos que não incluem o pagamento de juros da dívida pública – e evitar que o Brasil seja engolido pelo “buraco negro fiscal”.

Restrições políticas

O primeiro é a “reforma” da Previdência Social, segundo Paulo Guedes uma “fábrica de desigualdade” que consumia R$ 700 bilhões anuais e crescia R$ 40, R$ 50 bi todo ano. Segundo o ministro, a “opinião pública” merece ser agradecida por ter ajudado muito nessa tarefa. “Enquanto na França milhões de pessoas vão para as ruas para impedir uma reforma, o Brasil está dando um show de maturidade de opinião pública. Milhões de pessoas na rua pedindo a reforma. Em benefício de gerações futuras”, teorizou.

Para o ministro, a imagem do Brasil só não é melhor porque “lá fora” quem perdeu as eleições, o establishment que estava “há 10, 20, 30 anos governando”, é ouvido. “Aí dizem que vai ser o caos, essa imagem vai lá para fora”, garante. Mas isso possibilitou, de acordo com sua receita, jogar a taxa de juro para baixo. Assim, o primeiro foco está liquidado, afirma.

O segundo e o terceiro estão com os dias contados – as despesas com a dívida pública e os servidores públicos; estes, segundo os seus cálculos, custam R$ 296 bilhões por ano. Com a “reforma” administrativa, diz Paulo Guedes, o círculo se fecha e o caminho para zerar o déficit primário fica desobstruído. E, consequentemente, a “sociedade dos rentistas” perderão força com a inversão da relação “frouxidão fiscal e freio monetário”.

De acordo com Paulo Guedes, o desafio são as “restrições políticas”. Para ele, o establishment achava normal pagar R$ 400 bilhões todo ano de juros, enquanto o Bolsa Família gasta R$ 10 bilhões. Isso “para manter uma certa tranquilidade no front fiscal”. “É uma tranquilidade falsa, uma perversa distribuição de renda, é o paraíso dos rentistas, a destruição dos empreendedores. Vivemos décadas assim”, afirma. Segundo o ministro, o Brasil precisa vender todas as estatais para ajudar a zerar o déficit primário.

O cerne da questão

Essa tese não é nova. Na época do ministro Antônio Palocci na Fazenda, no primeiro governo Lula, ela surgiu com força por proposta do ex-ministro Antônio Delfim Netto. “Trata-se de uma série de procedimentos que envolvem um choque de gestão para aumentar a produtividade da máquina estatal, mediante cortes nas despesas de custeio e não nos investimentos”, explicou.

Em teoria, quase nenhum economista é contrário ao ajuste fiscal. Se o governo gasta estritamente o que arrecada, sua dívida deixa de aumentar — na verdade, ela passa a diminuir na comparação com o PIB. A discordância começa na hora de passar da teoria à prática. Na prática, essa receita só atende aos interesses rentistas. A “estabilidade monetária” ancorada no déficit primário zero implica redução drásticas das despesas com programas sociais, com investimentos em infraestrutura, com saúde e com educação.

A teoria de Paulo Guedes não vai ao cerne da questão – a origem da explosão da dívida pública. O governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) abriu as portas para a transferência brutal de recursos públicos para o setor financeiro ao adotar a constante elevação dos juros como esteio da política de “estabilidade” da moeda.

A medida provisória que instituiu o Plano Real anunciou o ”Fundo de Amortização da Dívida Mobiliária Federal”, o embrião do superávit primário que até hoje inferniza a vida brasileira. Venderam ações do BNDES e cortaram despesas orçamentárias para formar o ”Fundo de Estabilização Fiscal”. No primeiro dia útil do Real, a taxa de juros, puxada pelo Banco Central, disparou, chegando aos 12%. Um ano depois, já estava em 60%. Foi essa alavanca de controle da inflação que fez a dívida pública explodir.

Os Marshall ingleses

Paulo Guedes diz que o Brasil “constrói uma Europa a cada ano” com o pagamento de juros, em referência ao Plano Marshall, o projeto de investimento dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. O nome invoca outra questão. Falta, na sua teoria, um conceito básico: cidadania, ideia que tem raízes na antiguidade greco-latina.

Sua poderosa influência nas ciências humanas e no debate público pode ser mais facilmente rastreada se recorrermos ao trabalho de dois Marshall ingleses: Alfred e Thomas. O economista Alfred Marshall tratou do assunto numa conferência que fez em Cambridge, em 1873.

A indagação que o angustiava era se, apesar das desigualdades de renda e de riqueza, que considerava inevitáveis, a sociedade moderna chegaria a proporcionar a todos os indivíduos uma sensação de mútuo reconhecimento como membros de uma mesma coletividade.

Conseguiria a sociedade inglesa, por exemplo, diluir os sentimentos de distância e de humilhação decorrentes da estratificação social pré-capitalista, que pareciam permanecer, sob nova roupagem, nas diferenças de classe social engendradas pela própria economia capitalista? Seria possível imaginar que um dia todo indivíduo pudesse se ver como um cavalheiro, pelo menos no sentido de não se sentir humilhado por exercer um trabalho menos qualificado e menos bem remunerado?

O segundo Marshall (Thomas) respondeu afirmativamente e de maneira abrangente. Seu célebre ensaio Citizenship and Social Class pode ser lido como uma ode ao desenvolvimentismo capitalista. O que ele pretendeu mostrar foi a evolução histórica e, por meio dela, o enriquecimento e a crescente eficácia de três conjuntos de direitos: os civis, os políticos e os sociais.

Direitos civis são aqueles em que se baseiam as liberdades individuais. Direitos políticos são aqueles que conferem a cada cidadão uma parcela de influência na formação do poder político, por meio do voto e da participação em partidos e associações. E, finalmente, os direitos sociais: um mínimo de bem-estar econômico, seguridade social e a participação mais plena possível na herança cultural da sociedade.

Autor