Governo minimiza uso de máscaras e Estados flexibilizam isolamento
Boletim da Rede de Pesquisa Solidária da USP reforça importância do uso de máscaras como medida de baixo custo e eficiente para conter a transmissão da covid-19
Publicado 25/08/2020 23:29 | Editado 26/08/2020 00:57
O Brasil não contou com uma política nacional sobre o uso de máscaras para a prevenção do contágio da covid-19 até julho e as medidas para seu uso obrigatório não foram coordenadas nem controladas pelo governo federal, aponta a nota técnica 21, produzida pela Rede de Pesquisa Solidária. No final de abril, 13 Estados haviam adotado alguma medida para obrigar o uso de máscaras em público e, em fins de maio, 24 Estados haviam decidido pela obrigatoriedade. Os autores da nota apontam que a maior parte dos Estados adotou medidas de incentivo ao uso de máscaras no mesmo momento em que flexibilizou as medidas de fechamento de comércio, de serviços e de restrição às aglomerações. Dessa forma, a falta de fiscalização, de programas e a massificação de ações, além da desinformação, rebaixaram a importância do uso de máscaras e reduziram a capacidade de proteção da população mais vulnerável.
De acordo com a nota, as disputas entre o presidente Jair Bolsonaro, o Congresso Nacional e os Estados se voltaram para a obrigatoriedade do uso de máscaras como método de contenção da propagação e da contaminação pela Covid-19. A partir de abril, vários governadores e Assembleias Legislativas decretaram a obrigatoriedade do uso e acompanharam as recomendações das autoridades sanitárias mundiais. No plano federal, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1.562 em maio de 2020. Em 6 de julho, o presidente Jair Bolsonaro vetou 25 dispositivos da lei que tornavam obrigatório o uso de máscaras (Lei 14.019/2020), seguido de forte contestação por parte do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. No dia 3 de agosto, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, derrubou um dos vetos, e tornou obrigatório o uso mesmo em unidades prisionais. Por fim, no dia 18 de agosto, a Câmara dos Deputados e o Senado derrubaram os demais vetos presidenciais.
Os autores da nota apontam que somente a partir de 18 de agosto tornou-se legalmente obrigatório o uso de máscaras em “estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas” em todo o território nacional, passados mais de cinco meses da primeira morte registrada pela covid-19. Apesar das oscilações, é importante registrar a atuação do Judiciário e do Legislativo federal na contestação do Executivo em sua sistemática atuação para minimizar a pandemia e deixar de proteger a população, mesmo com instrumentos de baixo custo.
A nota analisa o nível de rigidez das políticas sobre o uso obrigatório de máscaras em cada Estado da federação. A análise cobre o período do início da pandemia até 20 de agosto. Diante da ausência de coordenação do governo federal, mesmo a atuação importante dos governos estaduais no distanciamento físico mostrou sua fragilidade no incentivo ao uso de máscaras como meio de proteção e de contenção da pandemia. Frequentemente, os Estados adotaram medidas de incentivo ao uso em conjunto com a flexibilização de medidas de isolamento físico. Essa combinação ocorreu em contexto de elevado nível de risco, de acordo com os critérios de classificação do Instituto de Saúde Global de Harvard.
Como resultado, as máscaras foram reduzidas em seu potencial de proteção, deixaram de salvar vidas e geraram impacto limitado no controle das taxas de infecções e óbitos no Brasil. A produção da nota foi coordenada por Lorena Barberia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e Tatiane Moraes de Sousa, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Participaram da elaboração do texto os pesquisadores: Luiz Guilherme Roth Cantarelli (FFLCH), Maria Letícia Claro (FFLCH e FGV), Isabel Seelaender Costa Rosa (FFLCH), Pedro de Santana Schmalz (FFLCH e FGV) e Marcela Mello Zamudio (FFLCH e FGV). A íntegra do boletim pode ser lida neste link.
Combate à pandemia
Os autores da nota salientam que políticas bem-sucedidas no enfrentamento da covid-19 se pautaram por um conjunto de medidas: a priorização da testagem, o isolamento de pessoas em fase de transmissão do vírus, o rastreamento de contatos, o tratamento de pessoas infectadas e a adoção de medidas de distanciamento físico, o desenvolvimento de antivirais, novos medicamentos e as pesquisas por vacinas. As máscaras integram o conjunto de medidas não farmacológicas que são fundamentais para a diminuição da transmissão da covid-19.
Como indica o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, o uso de máscaras funciona como uma barreira para a propagação de gotículas respiratórias no ar que podem conter o vírus e contaminar pessoas. Esse controle de origem permite que seja reduzida a propagação do vírus quando alguém fala, tosse ou espirra, principalmente quando o distanciamento social não é possível, como no transporte público. O uso de máscaras é especialmente importante quando se considera a transmissão do novo coronavírus por pessoas assintomáticas que, entre os infectados, podem representar 70%, segundo o CDC .
No início de abril, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou uma diretriz específica sobre a importância das máscaras e de seu uso, reconfirmada em sucessivos posicionamentos. Ao analisar a proteção gerada pelas máscaras no nível individual, pesquisadores identificaram que elas eram eficientes para filtrar partículas menores e maiores. Quando as máscaras possuem mais de uma camada de tecido, a eficiência é ainda maior, cerca de 80% em partículas maiores e 90% em partículas menores. O Institute of Health Metrics Evaluation, vinculado à Universidade de Washington (Estados Unidos), realizou diferentes projeções sobre o aumento de casos e mortes por covid-19 em vários países. Para o Brasil, o instituto indicou que o uso de máscaras por 95% da população poderia impedir cerca de 25.000 mortes pela doença até 1º de dezembro. Mesmo com esses benefícios projetados, o uso de máscaras pelos países variou tanto em sua obrigatoriedade quanto à existência de dispositivos legais e aos espaços destinados ao uso.
A tabela abaixo compara os índices de adesão ao uso de máscaras pelas populações de cinco países, em quatro momentos diferentes. Entre os países analisados, o Brasil se destaca pela ausência de uma política nacional sobre o uso de máscaras. Segundo os autores da nota, os dados sugerem que a adesão ao uso de máscaras no País acompanhou o aumento do número de mortos e infectados após o mês de abril, quando as medidas sobre seu uso obrigatório foram editadas. O salto na adesão em abril aproximou o Brasil de países como os EUA e a Alemanha. Outros países, como China e Índia, ao contrário, apresentaram taxas altas e mais homogêneas em relação ao uso de máscaras em todo o período observado.
Obrigatoriedade nos Estados
A obrigatoriedade do uso de máscaras nos Estados esteve ligada à preparação do processo de flexibilização das Políticas de Distanciamento Social, apontam os autores da nota. A Rede avaliou decretos e leis estaduais desde o início do ano até 20 de agosto. Os Estados que não decretaram nenhuma restrição sobre o uso de máscaras receberam um escore de 0, aqueles que recomendaram a utilização de máscaras ao sair de casa (ou em estabelecimentos) receberam um escore de 1. Já os Estados que determinaram para parte da população o uso obrigatório de máscaras (funcionários e clientes de estabelecimentos e serviços em funcionamento, transporte público) receberam um escore de 2. E os Estados que definiram para toda a população o uso obrigatório de máscaras ao sair de casa receberam nota 3. Cada medida também foi classificada geograficamente. Classificou-se como rígidas as medidas definidas para as capitais e ainda mais rígidas quando se aplicaram a todo o Estado. Para esta nota, o índice foi redimensionado para uma medida que varia de 0 (ausência de rigidez) a 100 (maior rigidez possível).
O indicador para monitorar o uso de máscaras integra o Índice de Rigidez das Políticas de Distanciamento Social (RPDS) do banco de dados Covid-19 Government Response Tracker for the Brazilian Federation, que tem o objetivo de acompanhar, em tempo real, as medidas adotadas por cada Estado no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus e seu nível de controle sobre a mobilidade das pessoas e as atividades econômicas. A metodologia é inspirada no banco de dados desenvolvido pelo observatório da Blavatnik School of Government da Universidade de Oxford. A tabela abaixo mostra os meses em que os Estados adotaram medidas rígidas sobre o uso de máscaras. De maneira geral, os Estados orientaram o uso de máscaras a setores e grupos específicos, como trabalhadores expostos ao contato intenso com o público. Os primeiros Estados a adotar as medidas de uso obrigatório de máscaras foram: Roraima, Sergipe e Tocantins.
Até o final de abril, 13 Estados haviam adotado alguma medida para obrigar o uso de máscaras em público. Até o final de maio, 24 Estados haviam decidido pela obrigatoriedade de máscaras. A maior parte dos Estados adotou medidas de incentivo ao uso de máscaras no mesmo momento em que flexibilizou as medidas de fechamento de comércio, de serviços e de restrição às aglomerações.
A falta de fiscalização, de programas e a massificação de ações, além da desinformação, rebaixaram a importância do uso de máscaras e reduziram a capacidade de proteção da população mais vulnerável, observam os autores da nota. Com essas características, as máscaras no Brasil, em contraste com a experiência de outros países, deixaram de ser eficazes, apesar de seu baixo custo, e mostraram impacto limitado na contenção das taxas de infecções e óbitos por conta da covid-19.
A tabela abaixo compara a mudança no índice de rigidez dentro dos grupos de Estados que adotaram a obrigatoriedade do uso de máscaras no mesmo período. Nota-se que a média do Índice de Rigidez das Políticas de Distanciamento Social (RPDS) diminui após a implementação das medidas do uso de máscaras.
Para o grupo que decretou a obrigatoriedade das máscaras até o final de abril houve uma diminuição do índice de rigidez em cerca de 8%; já o grupo que adotou a obrigatoriedade entre maio e junho teve uma diminuição de cerca de 3,5% na média do RPDS. Ao analisar apenas as flexibilizações do comércio, o grupo que implementou políticas relativas ao uso de máscaras com maior antecedência teve uma diminuição de 13,1% e o grupo que deixou para implementar a medida a partir de maio reduziu em 16,6% às medidas de fechamento do comércio e serviços. Na realidade, os Estados adotaram o uso das máscaras mais como um fator necessário para a reabertura do comércio. Dos 24 Estados que tinham políticas de fechamento de comércio e adotaram obrigação do uso de máscaras, 16 flexibilizaram as políticas relativas ao comércio.
Conscientização necessária
Os autores da nota destacam que as justificativas para a flexibilização das medidas de contenção da Covid-19 nos Estados procuram transmitir a ideia de que a pandemia está chegando ao fim. O boletim aponta a ampla desinformação a respeito do uso de máscaras, principalmente pela ausência de programas e campanhas promovidas pelas autoridades. Sua utilização ocasional e circunscrita a setores não obedeceu a uma estratégia integrada de combate à pandemia e, dessa forma, teve sua eficácia comprometida.
O vírus que provoca a Covid-19 veio para ficar. A humanidade vai conviver com sua presença por um longo período, mesmo com vacina, e as máscaras tendem a fazer parte da vida normal das sociedades. O Brasil ultrapassou a trágica marca de 110 mil mortes pela doença. Ultrapassou, assim, a taxa de mortalidade dos Estados Unidos em casos e em óbitos, medidos em relação a 100 mil pessoas. Os autores da nota defendem que está mais do que na hora de as autoridades e gestores públicos assumirem plenamente suas responsabilidades, a começar por não minimizarem o grau de proteção das máscaras, estimularem a conscientização da população e não desprezarem o uso desse equipamento de baixo custo, para reduzir o risco da covid no País.
Publicado no Jornal da USP