Excesso de normas jurídicas sobre pandemia confunde a população

Levantamento identifica contradição e excessos normativos que dificultam a comunicação com a população sobre as ações da pandemia; veto a lei das máscaras é citado como exemplo

A normatização das máscaras

A pandemia da covid-19 foi a principal justificativa da União para a edição de um número recorde de normas jurídicas. A quantidade porém, ao contrário de propiciar mais proteção, tem dificultado o entendimento da população quanto ao comportamento a ser adotado durante a pandemia. É o que aponta levantamento do Centro de Pesquisa e Estudos sobre Direito Sanitário (Cepedisa), da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos, a partir de informações compiladas do Diário Oficial da União e de outras publicações oficiais.

De janeiro a maio de 2020, o governo do presidente Jair Bolsonaro e outros órgãos federais editaram pelo menos 1236 normas jurídicas relacionadas à covid-19, entre elas 705 portarias, 65 resoluções, 32 medidas provisórias e 14 decretos presidenciais. Entre os objetivos do projeto Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil estão criar um banco de dados de normas editadas durante o período, saber como as autoridades governamentais responderam normativamente a esse momento emergencial e analisar o impacto da nova legislação sobre os direitos humanos (redução dos direitos trabalhistas, liberdade de ir e vir, acesso a informações sobre a pandemia, a serviços de saúde, produtos e serviços essenciais, dentre outros).

“A quantidade de normas dificulta para a cidadania a compreensão de quais são as regras e porque elas são assim — seu embasamento científico”, pontua a professora Deisy Ventura, pesquisadora da FSP e uma das coordenadoras do projeto.

A especialista diz ao Jornal da USP que “ter muitas leis não significa que as pessoas estejam mais protegidas ou tenham seus direitos resguardados”. Para entendimento, cita o caso do veto presidencial ao Projeto de Lei (PL) sobre a obrigatoriedade de uso de máscara pela população. “O presidente agiu contra a saúde pública ao vetar pontos importantes da lei”, afirma a professora. Com a decisão, o mandatário desobrigou o uso de proteção facial em espaços públicos, estabelecimentos comerciais, templos religiosos, instituições de ensino e presídios, o que contrapôs as orientações sanitárias de vários estados e municípios brasileiros, que adotaram leis mais restritivas.

Diante do abrandamento do PL, o Supremo Tribunal Federal (STF)  decidiu que as medidas criadas no âmbito federal não afastariam as competências de estados e municípios e que durante a pandemia os cidadãos deveriam seguir regras locais. A intervenção do STF “amenizou o problema, mas a população ficou desnorteada quanto aos comandos contraditórios das autoridades”, afirma.

“Agora, a legislação implica que o cidadão terá no município uma regra que diz que ele não precisa usar máscara, no estado uma que diz que precisa e a União diz que precisa. O mosaico é infinito”, explica Deisy, editora do boletim.

Regulamentação sobre a fronteira Brasil-Venezuela

Deisy Ventura diz que sobre o tema “fronteiras” foram editadas 15 portarias interministeriais. “Algumas delas infringem leis brasileiras e tratados ratificados entre países vizinhos”, como foi o caso da portaria nº 255, editada em 22 de maio de 2020. O texto discrimina, sobretudo, o povo venezuelano, que ficou proibido de entrar no território brasileiro mesmo tendo residência fixa, filhos ou cônjuges brasileiros. Outra portaria (255/19), editada logo em seguida, trata da deportação sumária dos venezuelanos em caso de insistência destes em atravessar a fronteira. “Essas portarias violam o Estatuto dos Refugiados e outros tratados internacionais”, relata a pesquisadora.

Se analisada a situação da Argentina, onde exclusivamente o ente federal toma ações de combate à pandemia, o impasse fica exposto: em nosso vizinho, há uma única lei, os municípios se alinham a ela e a população absorve com facilidade as medidas. Enquanto no Brasil, a fragmentação das decisões gera confusão, explica Deisy.

Para Fernando Aith, um dos idealizadores do projeto e professor do Departamento de Políticas e Gestão de Saúde, da FSP, a intensa atividade do Poder Executivo é algo antidemocrático e que “revela a falta de diretrizes e de norteamento de ações para responder aos desafios impostos pela pandemia”. Segundo o pesquisador, “o excesso de leis dificulta o exercício da cidadania porque as pessoas comuns não conseguem acompanhar todos os atos normativos”.

Aith lembra ainda que boa parte das 1196 normas infralegais (isto é, as de hierarquia inferior a das leis)  que não passam pelo Poder Legislativo permitem que o Poder Executivo imponha novas obrigações para o cidadão sem que estas estejam previstas em nenhuma outra lei, e são muitas vezes contrarias à própria lei ou à Constituição. Em outras palavras, as normas infralegais – portarias, resoluções, regulamentos e dispositivos secundários – deveriam apenas complementar ou explicar as leis.

Basicamente, é o Poder Executivo legislando, sendo muitas das vezes contra a lei. Quando essa dimensão infralegal é muito volumosa — conclui Deisy — “é dificultado o controle pelo Poder Legislativo e, mais uma vez, para a cidadania é muito complexo”.

Publicado pelo Jornal da USP

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