Iniciativas da direita tentam dificultar acesso das mulheres ao aborto legal

Medidas recentes de políticos homens de direita pelo país buscam persuadir mulheres contra procedimento, até mesmo nos casos previstos pela legislação brasileira

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O cerceamento aos direitos das mulheres encampado pela direita no que se refere ao aborto segue em marcha acelerada, mesmo contrariando a legislação vigente no Brasil. Iniciativas recentes de governantes e parlamentares dificultam ou criam constrangimentos às brasileiras que precisam recorrer ao serviço, inclusive nas situações previstas em lei. 

No Brasil, o aborto pode ser feito em casos de estupro, quando a gravidez põe em risco a saúde da mulher ou quando o feto é anencéfalo. No entanto, até mesmo para estes casos, setores da sociedade — sobretudo religiosos, conservadores e de extrema-direita — vêm buscando maneiras de burlar a legislação.

Conforme mostrou o jornal O Globo, entidades que acompanham a questão e órgãos públicos vêm recorrendo à Justiça para fazer valer esse direito, apontando inconstitucionalidade nessas medidas — via de regra, propostas ou viabilizadas por homens. 

A perseguição atinge mulheres e profissionais da saúde e em alguns casos, têm requintes de crueldade. Em Goiás, governado por Ronaldo Caiado (União Brasil), uma nova lei estabelece que o estado forneça o exame de ultrassom com os batimentos cardíacos do feto às gestantes que farão aborto legal — neste caso, a Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica entrou com ação no STF. 

Leia também: A batalha pela descriminalização do aborto

Regra semelhante, de iniciativa do vereador Leonardo Dias (PL), foi aprovada pela Câmara de Maceió, mas foi suspensa pela Justiça local, e também pela Câmara de Santa Maria (RS). Todas consistem numa forma baixa de “chantagem sentimental” que desconsidera a necessidade e o bem-estar dessas mulheres. 

Na capital paulista, gerida pelo prefeito bolsonarista Ricardo Nunes (MDB), o Hospital e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha suspendeu cirurgias de interrupção de gravidez, o que suscitou questionamento do Ministério Público. 

Em Santo André, uma lei de autoria do vereador Marcio Colombo (PSDB), proibia a “instituição de qualquer política pública pelos órgãos da administração pública direta, indireta ou autarquias do município de Santo André que incentive ou promova a prática do aborto” e punindo o agente público que descumprisse a regra — trechos da lei que contrariavam a legislação nacional foram suspensas pela Justiça. 

Já o governador bolsonarista do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), sancionou recentemente projeto do deputado distrital Martins Machado (Republicanos), aprovado na Câmara, que inclui a Marcha Distrital da Cidadania em Defesa da Vida e Contra o Aborto no Calendário Oficial de Eventos do DF. E Ibatiba (ES) criou uma semana de conscientização contra o aborto, proposta pelos vereadores Lineu Carlos de Assis (Podemos), Lucas Grecco (União Brasil) e João Clemente (PSDB).

Ainda segundo o jornal, na Câmara dos Deputados, “entre os 37 projetos de lei em tramitação desde 2018 sobre a legislação relativa ao aborto, ao menos 32 tentam restringir o direito”. 

Vidas em risco  

Em consonância com os segmentos que condenam o aborto por questões morais ou religiosas, essas e outras iniciativas que apelam para medidas de cunho inconstitucional ignoram intencionalmente o fato de que a impossibilidade de fazer o procedimento muitas vezes coloca em risco a vida de milhares de mulheres.

A realização do aborto de maneira segura, na rede pública de saúde, aliada à educação sexual e à conscientização sobre o uso de métodos anticoncepcionais é a melhor forma de garantir a vida das mulheres e a autonomia sobre seus próprios corpos e destino. 

A Pesquisa Nacional do Aborto 2021, feita por acadêmicos da Universidade de Brasília (UnB), mostrou que 52% das mulheres afirmam terem realizado aborto no Brasil e 43% disseram ter sofrido hospitalização após o procedimento. Estima-se que, atualmente, 90% dos abortos feitos no país são clandestinos por não envolverem as possibilidades legalmente previstas.

Leia também: Uma mulher morre a cada 28 internações por tentativa de aborto malsucedida

“Nessas situações (de hospitalização), temos relatos traumáticos de perseguição, convocação da polícia, mulheres algemadas nos hospitais. Então, há impacto na saúde pública pela ocupação de leitos, na saúde das mulheres porque, por alguma razão, utilizaram medicamentos inseguros, indevidos ou foram para a clandestinidade em clínicas inseguras, ou porque não tem a informação sobre como é um aborto. Por isso, procuram os hospitais”, explicou, à Agência Brasil, uma das autoras do estudo, a antropóloga Débora Diniz.

Dados do Ministério da Saúde apontam que entre 2012 e julho de 2023, mais de dois milhões de mulheres foram internadas em hospitais públicos em decorrência de complicações pós-aborto e destas, 675 perderam a vida.  O aborto, vale destacar, figura entre as cinco principais causas de mortalidade materna, com 5% do total. 

Apesar da urgência do tema, no país prevalece a visão moral e religiosa do tema, que desconsidera a questão como um assunto de saúde pública e como um direito das mulheres. Por isso, ainda é um dos tabus legais que permanecem impondo mortes e atrasos ao Brasil. 

Em setembro do ano passado, a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez começou a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas foi suspenso a pedido do então ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente da Corte. No final do ano, já na condição de presidente, Barroso disse que não pretendia pautar a questão “agora” por considerar que não estaria “amadurecida” na sociedade. 

Num ano de eleições municipais, o debate deverá ser novamente ignorado. E de protelações em protelações, o país segue permitindo que milhares de mulheres, em geral pobres, percam a vida por não disporem de recursos para abortar, quando necessário, de maneira segura e assistida.