A batalha pela descriminalização do aborto

A despeito dos três permissivos legais, ainda hoje é enormemente difícil a uma mulher usufruir desse direito porque os serviços de abortamento legal são de difícil acesso. Há estados que não dispõem de um único hospital que realize o procedimento

Mulheres fazem marcha pela legalização do aborto, com lenços verdes em referência à campanha que derrubou a criminalização na Argentina. Rio de Janeiro, 2018. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em voto histórico proferido virtualmente em 22/09/23, a ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal (STF) defendeu a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação. O que está em votação, para efeitos práticos, é que a pessoa que aborta ou auxilia o abortamento não poderá ser presa por isso. A IVA (interrupção voluntária da gestação) poderá ser realizada em estabelecimentos privados ou mediante autoaborto orientado, desde que observadas as condições sanitárias para a prática — relativamente simples e segura quando feitas fora do ambiente de criminalidade. O Estado só será obrigado a disponibilizar os serviços de abortamento legal nos casos já previstos em lei.  

Atualmente, a legislação brasileira prevê que a prática não será penalizada se realizada em instituições públicas de saúde mediante três casos específicos, chamados excludentes de ilicitude — a qualquer tempo da gestação — se a gravidez for decorrente de estupro (desde 1940), se houver risco de morte para a gestante, e/ou se o feto for portador de anencefalia ou anomalia incompatível com a vida extrauterina (entendimento adotado pelo próprio STF em 2012). Entretanto, na vida real, as brasileiras veem mesmo este direito restrito ser sistematicamente violado por posições fanatizadas e instrumentalização indevida de equipamentos públicos de saúde.

Leia também: Rosa Weber diz que criminalizar aborto castiga mulheres mais vulneráveis

A despeito dos três permissivos legais, ainda hoje é enormemente difícil a uma mulher fazer uso desse direito porque os serviços de abortamento legal são de difícil acesso (há estados inteiros que não dispõem de um único hospital que realize o procedimento, por exemplo); há pouca informação a respeito, e o crescente ambiente de caça às bruxas instalado no debate público sobre o tema intimida tanto profissionais de saúde quanto mulheres, que permanecem recorrendo ao abordo ilegal sob condições de extrema insegurança sanitária.

Mesmo neste cenário, estima-se que uma em cada 7 mulheres aos 40 anos, no Brasil, já tenha interrompido uma gestação indesejada pelo menos uma vez na vida. E o aborto clandestino inseguro permanece sendo a quarta causa de morte materna no Brasil. Dito de outra forma, a criminalização do aborto não impede que ele seja realizado, apenas arrisca a vida e a saúde de milhões de meninas e mulheres brasileiras em idade reprodutiva.

Brasil sob trevas

O clima de terror aumentou ainda mais sob o governo Bolsonaro e sua inacreditável lugar-tenente Damares Alves, que protagonizou episódios repulsivos como o da exposição e perseguição de uma menininha de 10 anos, estuprada sistematicamente desde os seis, e que precisava recorrer ao aborto para preservar a própria vida. Infelizmente, não foram casos isolados. O Poder Executivo sob Bolsonaro instalou o medo entre as mulheres que precisavam abortar, com direito à edição de cartilha ilegal com conteúdo falacioso para intimidá-las. Mesmo nas instâncias inferiores do Judiciário, há registros de casos em que se promoveu a tortura psicológica de gestantes que desejavam interromper a gestação, tais como submetê-las a ouvir o coração do embrião, bonequinhos simulando fetos, manifestações públicas com faixas e cartazes acusando-as de “assassinato”, e outras crueldades indescritíveis.

Leia também: 52% dos abortos são feitos por jovens com menos de 19 anos

No Legislativo, seja ele Federal, estadual ou municipal, a situação tampouco é diferente: há mais iniciativas no sentido de restringir ou acabar com o direito ao aborto do que propostas que visem a ampliá-lo. Inventaram até mesmo uma figura jurídica: o “nascituro”, que, todavia, só serve para tirar direitos das mulheres. Jamais se discutiu que pensão alimentícia seja paga desde a concepção, por exemplo. E enquanto grupos de fanáticos criam espetáculos grotescos, milhares e milhares abortam abandonadas na clandestinidade. Muitas ficam com sequelas graves — possivelmente estéreis para sempre —, outras tantas morrem tentando.

Criminalizar o aborto é uma expressão das mais ferozes de um patriarcalismo primitivo e hipócrita, escondido sob argumentos religiosos mal disfarçados — o discurso em defesa do “começo da vida”, geralmente, é calcado na indisfarçável ideia de “alma”, conceito essencialmente religioso, portanto, de foro íntimo —, que tolhem direitos fundamentais das mulheres: vida, saúde e autonomia. Direitos barganhados muitas vezes sob o mais tacanho oportunismo político. Não há cidadania plena com a criminalização de milhares de cidadãs que interrompem voluntariamente uma gestação — que ocorre dentro do corpo dela e cujos resultados recairão desproporcionalmente sobre sua vida. Qualquer jornada em defesa da emancipação das mulheres passa, necessariamente, pela descriminalização e legalização do aborto.

O voto de Rosa Weber e a posição dos e das comunistas

Historicamente, as e os comunistas sempre tiveram posição firme sobre o tema: favoráveis à legalização do aborto como condição indispensável à plena emancipação das mulheres. A posição das e dos comunistas deriva precisamente da sua compreensão da função social da maternidade, que deve ser valorizada ao fornecer equipamentos públicos que viabilizem o exercício da maternidade com dignidade: berçários, creches, escolas, saúde, emprego decente, moradia, acesso à cultura etc. Contribuir com a produção social é a obrigação de todas as mulheres e homens. Já a reprodução social deve ser compartilhada entre Estado e indivíduo, onde o Estado entra dando o suporte e ao indivíduo cabe a decisão (de ter ou não ter filhos, por exemplo). Em todos os países socialistas, em condições normais, o aborto foi descriminalizado/legalizado e o trabalho reprodutivo, em maior ou menor grau, socializado.

Leia também: Estados Unidos: os sentidos da iminente proibição do aborto

O que temos hoje no Brasil, na prática, é que a decisão é do Estado — uma vez que a distribuição de contraceptivos na rede pública de saúde é incipiente e abortar dá cadeia — e o cuidado é estritamente individual, já que a rede de proteção social à maternidade é fragilíssima. É uma inversão que revela uma visão patriarcal e autoritária sobre o papel social das mulheres com a qual nenhum país que se pretenda democrático pode compactuar. É uma humilhação a todas as mulheres que o Estado e a sociedade as obriguem a gestar e parir filhos que não querem. Lembrando que a descriminalização do aborto se destina às mulheres que queiram interromper uma gestação indesejada, não o tornará obrigatório ao conjunto de todas as gestantes. É para respeitar a vontade da mulher.

A descriminalização do aborto é a última grande barreira jurídica à emancipação das mulheres no Brasil. É o reconhecimento do Estado e da sociedade da capacidade ética das mulheres em decidirem quais contribuições estão dispostas a dar à sociedade. A maternidade, sem dúvida, é uma função social fundamental, mas não pode jamais vir como imposição ou destino obrigatório. É uma decisão tão séria que, mesmo a criminalização do aborto e o ambiente persecutório dela decorrente não impede que abortos sejam realizados diariamente no Brasil. O único que se está conseguindo, enquanto sociedade, é arremessar para a clandestinidade milhares de mulheres, com consequências catastróficas, especialmente, para as mais pobres e negras.

O ambiente misógino, o fanatismo religioso, a negação de direitos após quatro anos de trevas bolsonaristas, legou um cenário gravíssimo para os direitos das mulheres. Por isso, a votação da descriminalização do aborto pelo STF se reveste de importância capital. Será o julgamento que vai dar os parâmetros segundo os quais o Estado brasileiro tratará mais de metade da sua população. Como cidadãs autônomas ou como úteros disponíveis? Como mulheres que podem contribuir com a sociedade no espaço público ou como seres condenados à maternidade impositiva?

A argumentação da ministra Rosa Weber foi bastante sólida, evocou a questão da autonomia reprodutiva das mulheres, o silenciamento histórico das mesmas (as principais interessadas) sobre o tema, e que a proibição do aborto não apenas não impede sua realização por milhares de brasileiras anualmente como causa graves problemas na saúde pública. A ministra também recorre aos acordos internacionais firmados pelo Estado brasileiro sobre o tema, como a Plataforma de Beijing 1995 das Nações Unidas e outros pactos firmados pelo Brasil no qual se compromete a descriminalizar as mulheres que abortam, como o fazem a quase totalidade dos países desenvolvidos, as chamadas democracia liberais. Resta saber se seus colegas de toga seguirão sua posição ou manterão a tradição de ignorar a opinião das mulheres na matéria.

Este debate está sendo pautado no primeiro ano de governo de reconstrução democrática, sob os apelos de união nacional. Uma derrota será um golpe duro, simbólica e praticamente. Para as mulheres e para a democracia. Isso reveste de importância ainda maior os rumos deste julgamento. Que o STF cumpra o seu papel e garanta a cidadania das brasileiras. Respeitem as mulheres: descriminalizem o aborto!

Referências

Pesquisa Nacional de Aborto no Brasil 2021 – https://doi.org/10.1590/1413-81232023286.01892023

DATASUS – https://datasus.saude.gov.br/

Autor