“Apenas uma vez”: a música e a paixão

Com um filme que trata das diferenças culturais, diretor irlandês John Carney usa a narrativa musical para atestar as possibilidades de reencontros de um casal de músicos com seus pares

A vantagem dos pequenos filmes, feitos à margem dos grandes estúdios, principalmente os de Hollywood, é que se pode cometer pequenos deslizes na estruturação das cenas, escapar à ditadura do apresamento das cenas e manter a integridade da criação. Em “Apenas uma Vez”, do irlandês John Carney, estes benefícios afloram numa narrativa que se vale da liberdade criativa para montar um mosaico das relações amorosas, a partir de situações sustentadas por canções que as matizam. Seus personagens são seres que vivem à margem de uma nação, a República da Irlanda, integrada à comunidade Européia. O músico de rua (Glen Hansard) ocupa parte de suas horas tocando violão e interpretando suas canções numa rua movimentada de Dublin. Ganha alguns trocados e nutre a esperança de ver seu trabalho reconhecido não pela engrenagem das gravadoras, mas pelo público que anda à sua volta.


 



Nada indica que sairá desse espaço para grandes vôos até encontrar a também outsider florista tcheca (Markéta Inglová), que, ousada, o instiga a ampliar seus horizontes. Não sem antes mostrar que também ela tira acordes clássicos do piano de uma loja de instrumentos usados. Músicos amadores, ambos se desafiam mutuamente, se interpelam, até se tornarem complemento um do outro. E se estabelece um diálogo entre seres de culturas opostas, simbólicas da origem de seus executantes. Ele, irlandês, dialoga com o pop, ela, tcheca, se imbui de uma formação clássica. O encanta ao executar com maestria a sonata de Mendhelson, “Som Sem Palavras”, herança de um país que outrora permitiu o acesso de seu povo à criação musical sofisticada, não voltada para o consumo imediato. Enquanto ele se vê entre o pop mais elaborado, com letra e música que se fundem para refletir seu estado de espírito.


 


 


Este aparente antagonismo, de pessoas de formação adversa, é o que permite o diálogo entre as duas culturas. Ela, pianista, é imigrante, vive da venda de flores e da faxina feita nas residências dos irlandeses para manter a mãe e a filha. Ele, técnico em equipamentos domésticos, prefere testar suas criações na rua, sujeito a assalto e o alheamento dos passantes. Com estas caracterizações, Carney matiza a complementaridade das culturas, a possibilidade de convivência entre seres de formação diferente, vivendo num país em condições subalternas. Ela e outros tchecos dividem sonhos, espaços diminutos e o aparelho de televisão onde seus compatriotas assistem a seus programas favoritos.


 


 


Personagens perambulam pelos restos do consumo


 


Embora pertençam à Comunidade Européia as diferenças de status, de acesso aos bens de consumo, à moradia e ao trabalho, bloqueiam qualquer sentido de igualdade. Carney o demonstra na seqüência em que a florista segue o músico de rua pelas vias de Dublin arrastando um enorme aspirador de pó. É como se este equipamento doméstico aspirasse à igualdade que deveria haver entre ambos. O que os equipara é seu trabalho; as buscas que empreendem para encontrar a si mesmos. Suas culturas se complementam de uma forma que rompe com o multiculturalismo; as diferenças permanecem; dada à formação de ambos. Elas se fundem apenas quando eles se harmonizam para levar adiante um projeto comum. Mesmo assim, predomina a cultura do “ser dominante”, no caso ele, o músico irlandês.


 


 


O pop se impõe sobre o clássico, quando é formada a banda para executar o CD Demo, que permitirá ao músico oferecer seu trabalho ao mercado fonográfico. As culturas então não se equivalem; há sempre a preponderante, e esta é, sem dúvida, a do dominador, ainda que Carney tente mostrar ser possível a convivência entre ele, o músico, em seu país natal, e ela, no país para onde imigrou. Romper com esta estrutura requer outro tipo de relação, em que os outsiders se ocupam de suas criações sem que uma se sobreponha à outra. Carney tenta caminhar por esta trilha numa bela cena em que Ela, ao circular pelo imenso estúdio onde gravam seu CD Demo, se vê numa sala com o piano de alto nível. Ali os papéis se invertem e ambos conseguem trocar experiências e a emoção aflora.


 



Esta dialética entre a imigrante tcheca e o músico de rua domina “Apenas uma vez”. Eles circulam por espaços onde se vê, como na loja de consertos de eletrodomésticos do pai do músico, centenas de equipamentos defeituosos, tal um cemitério de restos de consumo. Ou quando eles entram na loja de instrumentos musicais de segunda mão. Ali há mais harmonia, nem por isto menos significativo da rotatividade do consumo desses instrumentos musicais. É destes restos que eles vivem, tiram a seiva para suas criações musicais. Eles, assim, servem para alimentar seus sonhos, que do contrário se tornariam mais difíceis. Cada um deles vive o intermezzo entre o antes e o futuro. No intermezzo eles esperam ganhar forças para superar os baques das separações. Falam sobre isto abertamente, tentando soterrar o que não conseguem manter em seu subconsciente.


 


 


Passado dolorido não lhes permite seguir adiante


 


Suas aflições, dores e lembranças afloram não em seus diálogos, vêm através das letras de suas músicas, na forma como as entoam, alinhavam seus acordes. Falam de quedas, de buscas e da necessidade de reagir. São canções românticas, que traduzem sentimentos reprimidos, emoções que vêm à tona, mas não transbordam. Eles trocam impressões, revelam parte de seus sentimentos mais íntimos, sem adentrar ao mais profundo de seu “eu”. O passado dolorido não lhes permite ir adiante. Às vezes quase se tocam, se acariciam, ficam, no entanto, num leve toque, num olhar mais apaixonado. A música os aproxima; o passado e o futuro não lhes permitem imaginar situações em que ficarão lado a lado ou, quem sabe, juntos.


 


 


Toda esta gama de atrações, de sentimentos, emerge nas canções, cujas letras, bem elaboradas, que traduzem o clima vivido por eles. A música aqui não serve apenas para reforçar o estado de espírito dos personagens; faz avançar a narrativa, ilustra o que a florista e o músico de rua não dizem em seu relacionamento. “Apenas uma vez” usa-a para se contrapor ao que é dito nos diálogos e mostrado nas seqüências ao longo da história. Um bom recurso para escapar à narrativa musical comum, de fazer o personagem dialogar cantando (“Amor Sublime Amor”, de Robert Wise, “Gigi”, de Vincet Minelli), usar a canção para declarar seu amor (“Os Guardas Chuvas do Amor”, de Jacques Demy) e usá-la para narrar os entrechos do filme (“O Show Deve Continuar”, de Bob Fosse) ou para introduzir a narrativa (“A Noviça Rebelde”, de Robert Wise).


 


 


Às vezes, na tentativa de fazer a canção fluir, Carney, a deixa se alongar em demasia, fazendo o filme perder ritmo. Noutras o faz na exata medida. Fica a impressão de que tenta, a todo custo, equilibrar a parte dramática, o relacionamento entre a florista e o músico de rua, com diálogos e música, e logo volta a eles, para traduzir o estado de espírito de ambos. E, de novo, se alonga nas canções. Esta forma narrativa, para um filme de 85 minutos, faz com que a metragem se expanda. E sobressaia a música, que é o que importa. Afinal a intenção é mostrar a composição musical em seus estágios até a fusão da letra com a melodia. O que se constitui num bom arranjo. Contribui para isto a fotografia de Tim Fleming e a direção segura de Carney, que consegue transitar da Dublin urbana para as cenas de campo e de mar, com os personagens flutuando sob os acordes de belas canções.


 


 


Diretor e músicos fazem do filme criação coletiva


 


 


“Apenas uma vez” é resultado do trabalho do diretor John Carney e do guitarrista irlandês Glen Hansard, do grupo The Frames, e da pianista tcheca Markéta Irglová, que nunca haviam feito cinema. Com a canção “Falling Slowly”, foram premiados com o Oscar de Melhor Canção, de 2007. Custou apenas U$ 150 mil dólares (cerca de R$ 250 mil reais), valor ínfimo para uma produção européia. Portanto uma pequena produção, com narrativa clássica, sem grandes arroubos de linguagem ou de recursos técnicos, centrada num fiapo de história, com interpretes de grande empatia e desconhecidos do espectador. Este um de seus trunfos. Carney ao não usar atores conhecidos, que talvez não usassem os instrumentos com igual veracidade, tornou seu filme mais crível, aceitável em suas situações.


 


 


Faz uma opção por personagens outsiders que buscam, ainda assim, fugir à estrutura capitalista que nenhuma chance lhes dá. E sem estigmatizar o imigrante, vinculando-o a marginalidade, ao crime organizado, a exemplo de Anthony Minghella, em “Invasão de Domicílio”. Numa cena, em que atesta a possibilidade de reencontro, após o intermezzo, a florista volta o rosto para além da sala, onde toca piano, e, num breve olhar, deixa a narrativa em aberto. Aqui o reencontro pode ser a continuidade de algo que sofreu um intervalo e terá  continuidade duradoura, bastando para isto não haver ruptura e um novo intermezzo, aliás, como ocorre na vida real, onde o intermezzo sucede o antes e não garante o depois.


 


 


“Apenas uma vez” (Once). Drama musical. Irlanda. 2006. 85 minutos. Direção/roteiro? John Carney. Elenco: Glen Hansard, Markéta Irglová, Alaistar Foley, Geoff Minogue.

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