A esquerda bem informada
A esquerda bem informada

Marco Albertim

Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em PE.
O último poema

O poeta findou-se ao meio-dia de uma segunda-feira, em 6 de junho; no mesmo dia e mesma data em que nascera, tão mediano quanto sua vida de cinquenta anos. Suspeitara de que não passaria dos cinquenta, quando, ainda com vinte e cinco anos, olhou para cima e deu-se conta de que a lua não abrira mão do quarto crescente por uma semana.

O beijo da dama

A dama de vermelho despiu-se à sombra do coqueiro. No terraço de sua casa, inda que fosse noite, imaginou o dia descortinando a palidez de sua pele, salpicando-a de suores quentes.

Dama de vermelho

A memória está sempre à espreita, carrega consigo as chances de apalpar uma ou outra lembrança. Inda que distante a lembrança, o traço que fora sua causa segue o juízo para estorvo ou conforto do portador. No caso que segue, deu-se o conforto, visto que o portador, já sem o conchego do que imaginara ser fruto de urdumes íntimos, familiares, viu-se tão só quanto o poente que some sem a prenhez do verso que soprara na véspera.

Chuvas

O estrépito dos trovões serviu para lembrar-lhes de que não estavam de todo esquecidos. O mau tempo, espreitando-os, enrijou-lhes a guarda, inda que cada um fosse tão vulnerável quanto os limites do Calumbi, sem porteiras e espremidos pelo canavial das usinas. A chuva cobriu o céu fosco da cidade, embaciando as paredes das casas. As casas, já cinzentas sob o sol, perderam todo traço de vida sob o ruído grosso da chuva.

Dia de posse

No sereno da noite, a inhaca se acomodara nas sentinas, nos esgotos. O vento não soprara, meio que sonolento, tão doentio quanto os achaques nos vãos da rua. No interior das casas, protegidos por janelas com frestas inclinadas para baixo, os moradores se criam imunes a doenças, inda que cada um tivesse seu achaque.

Parlapatão

Toda a véspera do ano-bom Luar Couto passou na casa da amante; o dia e a noite, no réveillon que urdira tão a seu modo; o rosto solene dando lugar à cupidez dos olhos, na mira do vestido inteiriço de Isabel, cobrindo a robustez das carnes.

Fim de ano

Um hacker clonou minha senha no facebook. Com a sanha de um cão raivoso, desferiu dentadas em oito pessoas de minha relação. Insultos sonoros, de fazer inveja a lúmpens. A indignação fez corar o rosto da doce Carol Gondim. Vi-a pequena, de passos curtos, a imaginação tão viçosa quanto palpitante de curiosidade sobre os amigos de seus pais. Quase segui seu crescimento até vê-la coberta do recato próprio de uma matrona. O rosto se mantém suave, digno de um vento promissor.

Sans-culotte

São nove horas. O sol não incide na calçada coberta pela marquise. Antes houvesse luz, calor intenso, posto que à sombra, moscas-varejeiras zunem tontas no cimento áspero do piso. Só uma loja se mantém aberta, com sacos no chão expondo cereais, carne-seca, bacalhaus e peixes defumados e um açúcar que, de tão grosso, derrete-se feito uma gosma viscosa.

No cemitério

A jactância pessoal torna-se mais caricata quando o sopro do vento traz um cheiro de morte. O caricato, julgando-se superior, finge não sentir a morrinha que escapa de uma fenda ou outra de um sepulcro. Seus gestos são como um deboche da morte. Três horas da tarde o sol fez zunir as campas do pequeno cemitério. A luz, àquela hora, misturou-se à luminosidade própria dos mármores de cada túmulo; uns pretos, outros brancos, outros azulados cor de chumbo.

Ingrid nas livrarias

Por certo a loura de feição europeia, a que deu origem à personagem do conto – Ingrid tinha alergia à lama do Capibaribe -, não sabe que o acesso a seu perfil está estampado na capa do livro.

Noutro dia…

O sol incidiu sobre o túmulo semiaberto, queimando o que restara do defunto ali posto há quinze dias. Nos dias de semana, nenhum visitante, posto que ralos, deu conta do fedor da carne decomposta. Só os coveiros, já acostumados ao bodum saído de uma fresta ou outra, de uma cova coberta de barro seco, revestido de uma fina camada de cimento; tão fina quanto erodida entre um grão de areia e outro; o cheiro dali escapando, cúmplice à transpiração do morto, quiçá à força do além-túmulo.

Galinhas-verdes

O professor Nepomuceno acordou mais cedo. Vestiu-se como todos os anos: calça preta sustida por um cinturão de couro da mesma cor, afivelado num bronze lustroso; camisa verde, mangas compridas, ajustada no interior da calça; nos ombros, o sigma sobre as alças salientes. Fez tudo sob o olhar de aprovação de Aurora Nepomuceno, sua mulher.

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