– Por que a senhora está vestida de azul?
– Pra ninguém saber que eu voto em Dilma.
– Por que a senhora está vestida de azul?
– Pra ninguém saber que eu voto em Dilma.
Às dez em ponto o coronel chegou para votar. Escolhera a hora conforme seu juízo utilitário. Se viesse antes, a fila de votantes ainda estaria se formando; correria o risco de se juntar a um grupo ainda minguado de eleitores. Se viesse depois, correria o mesmo risco, porque estaria próximo da hora do almoço. À tarde…
O caminhão estacionara ainda escuro. Antes que a manhã despontasse, haveria tempo para descarregar os bichos, levá-los à feira, expô-los em linha reta em todo o quarteirão. Não haveria perigo de perder o lugar, inda que houvesse concorrência para ocupar os espaços vizinhos nas duas esquinas, onde a freguesia entrava curiosa para a escolha de marrãs de quartos cheios ou galinhas de sobrecu pelado.
Baixar a guarda sobre os impulsos pode ser comum, na medida em que a exposição às tentações é permanente. Expor-se às tentações pode ser ato de vigília, para nutrir-se de conhecimento e prover-se de defesa. Sobretudo para quem, há muito no trato entre homens e mulheres, habituou-se a enxergá-lo como a troca não só de bens materiais, mas de desfrute do afeto carregado de iminente luxúria.
O costume dos homens do arruado era olhar para o céu, só para confirmar o calor, a temperatura alta. Na manhã daquela segunda-feira, tinham os olhos tão somente para o chão cinzento, seco, da rua comprida entre as casas enfileiradas sobre calçadas altas, e o riacho paralelo na margem do canavial. Por ali passava todos os dias, e a hora todos sabiam, Silvino Aureliano, o chefe da capatazia da Usina Maravilha.
– Camponês não é gente.
– Por que você diz isso?
– Porque são sujos e falam errado
Por mais de cinquenta anos, o professor Jorge Contreras usou paletó e gravata. Agora tem oitenta, não usa paletó, mas ostenta sobre a camisa de linho engomada, uma gravata vermelha ou azul, com pintas brancas de cima a baixo, feito pingentes rutilantes.
Não foi difícil para o professor Edgar Pedro fingir-se de revolucionário. Como militante, assimilara os métodos e cacoetes da esquerda; depois de cooptado pela polícia, reproduziu-os sem macaquear para não chamar a atenção. Convenceu-se de que se tornou um espião perfeito; assim se presumira, tanto que entregou as informações à polícia sem hierarquizá-las conforme o grau de importância de cada uma. Donde se deduz, ora, que não foi espião perfeito; se é que os há.
Não fosse o costume de Ramiro na remoção de esqueletos, depois de escavar covas, deparar com o estranho entre os túmulos teria sido resultado da erosão em uma cova rasa, deixando escapar o morto que ainda não dera o último suspiro. Ramiro, andando no corredor comprido do cemitério, entre blocos de gavetas tumulares de um lado e de outro, apoiando no ombro direito o cabo da enxada, deu de cara com o estranho.
Em pé, no pardo-escuro sob o telhado da casa de farinha, os homens não tiveram como evitar a cisma nos olhos dos três capatazes sentados no batente estreito da casa. Afora o relho nos pulsos, os três não precisaram erguer para trás a aba estreita do chapéu de vaqueiro, para ajuizar a reação dos camponeses com a repentina presença deles.
Não fosse a súbita aparição da velha com os dois netos, nem a visita da filha incensando o brejo verdoso com o perfume de seu Royal Briar temporão, o vale do Engenho Bento Velho teria sua planura rasa só abanada pelos galhos do bambuzal em volta; o capim verde, com nós entre as hastes, por certo estaria oscilando entre o balanço dos bambus e a umidade fecunda na margem do riacho.