Nas primeiras chuvas do inverno, o canto da praça, sob o oitizeiro, ficou vazio. Na véspera, um mudo grupo de moços, sem saber o que falar, sorvera um tubo plástico de cola; cada um com o seu.
A patrulha da Polícia Militar interrompeu o trânsito sob o viaduto. A multidão, aos gritos, exigia o rompimento de outra patrulha, na avenida Agamenon Magalhães. O propósito era ter acesso ao Centro de Convenções, onde o governador despachava com secretários.
O humor escrachado do Vivencial Diversiones, a ideologia do deboche anárquico em confronto com o padrão de moral nos fins dos anos 70, é reproduzido no filme de Hilton Lacerda – Tatuagem. Sem adesão à zombaria como modelo de militância ou perfil adequado para questionar os valores em declínio nos fins do regime militar.
Às oito da noite, inda que fosse um domingo, a praça em frente ao convento não abrigava ninguém sob seus fícus cinquentões. O cruzeiro de pedra, no centro, era só um vulto indistinto, com a redondez piramidal da mesma pedra de cantaria. Já as ruas de duas laterais da praça, iluminadas pelas luzes dos postes, davam conta de um movimento miúdo de gentes vindas do Baldo do Rio, ribeirinhos endomingados com chitas ordinárias, sem remendos.
Numa noite sem o repique do frevo, nem bêbados andando a custo, Custódio Penaforte saiu de sua casa, na rua da Regeneração, em Água Fria. Importante mencionar o domicílio porque, de um lado, avizinhava com o Caldinho de Penaforte, bodegueiro e irmão de Custódio.
O oitizeiro não dá mais oiti, mas tem donos; não pelo cheiro de suas folhas, cuja fresquidão se rendeu ao bodum de maçãs podres ao pé da raiz. É a sombra descendo da copa para a calçada da Praça Dom Vital, que infunde o sentimento de posse no juízo erradio do vendedor de maçãs.
Há um vazio na Praça Dom Vital. O mercado São José não perdeu o frescor de sua pintura verde, conversa ruidoso com as copas de cada fícus no entorno da praça. O engraxate de barba rala, espreita os pés calçados de tênis de moços e meio-moços; com resignação, inda que com pesar.
Fácil foi entrar na pensão de madrugada, sem ser notado pela proprietária. Sequer um hóspede se deu conta de que William Basquental, trajando calça marrom e camisa da mesma cor, subiu a escada helicoidal, de madeira, sorvendo os fungos da parede sem cor, de tão desbotada, e pouco se importando com a inhaca do próprio suor na roupa, infectando a sala de atendimento a hóspedes.
Uma dama ocupou uma das mesas do bar a pouca distância da mais próxima, onde dois moços, sem afetação na voz, distraíam-se numa conversa miúda. O rosto dela, de tão pequeno, quase ocultou-se sob os óculos de lentes chapadas.
– É uma avenida, mas é escura. Não há como você seja visto entrando na casa.
– E a vizinhança?
– A vizinhança entretém-se na novela, esquece até de ladrões porque tem um casal de cães pastores em casa.
– Tem cachorros?!
– Sim, mas ficam trancados nos fundos da casa. Tarde da noite é que abrem a grade da jaula.
Nunca fora de rezas, nem mesmo os trejeitos de crente vincavam-lhe a testa; os olhos não se fixavam em nada da igreja, só a quietude funda das pupilas resgatando as chances de um bem-estar impossível, por isso mesmo frequente nos cálculos da memória. Na abóbada, a pintura de anjos com asas da mesma cor das nuvens, o rosto redondo e rosado de cada um em volta de um Cristo imberbe, serviu para acentuar a recusa a cortes de bajulação.
Um mequetrefe de bengala sentou-se na margem do rio Capibaribe, de costas para o leito gelatinoso às cinco da tarde. Com a barba por fazer, inda que de uso antigo, ancorou o queixo no torso da mão direita apoiada na curva da bengala. A calça de linho azul escuro, paletó da mesma cor, camisa branca, uma gravata da cor da camisa, em vez de reavivarem a memória de indumentária antiga, cobriram-no de um certo bolor, feito uma decrepitude sem zelo.