Urariano Mota: A literatura e o cinema

A literatura tem uma superioridade estética, de aprofundamento do humano, que o cinema não tem, nem pode ter

Hoje de manhã, refletindo sobre a série Hollywood, da Netflix, que recomendo, me ocorreu o pensamento a seguir.

Não sei se o amigo Celso Marconi, um dos maiores críticos de cinema do Brasil, não sei se ele vai concordar. Mas a literatura, além da óbvia diferença em relação ao cinema, tem uma superioridade estética, de aprofundamento do humano, que o cinema não tem, nem pode ter.

Isso me veio a partir do seguinte: em um filme, até mesmo nos muito bons, o espectador não tem tempo de refletir sobre o visto no momento em que as imagens passam. Notem que mesmo no recurso de se parar um filme, uma série, no instante que nos marca, ainda ali, na volta, não haverá um desenvolvimento que seja uma descida na profundeza do que nos foi sugerido. Haverá outros desenvolvimentos, é claro, na maioria das vezes como uma repetição de serial killer. Em outros, como um desvio do esperado. Isto é, o cinema é uma arte cujo voo é parado na memória do que foi visto.

Imagem de divulgação da série Hollywood, produzida pela Netflix

Agora chego ao específico: em um livro, em um romance, em um conto, em um poema, o leitor pode parar a leitura para reconduzi-la dentro da própria pessoa. Uma página, uma frase, um diálogo, um verso, faz a gente parar e ficar maravilhado ou absorto no que acabou de ler. Em meu modo particular, faço uma pausa na leitura, sublinho, e às vezes escrevo em um canto da página o que me transmitiu aquele momento no trecho.

No cinema, mesmo em câmera lenta, mesmo que o paremos diante de uma frase rápida de Groucho Marx, por exemplo, ou mesmo que o paremos naquele instante maravilhoso do final de Luzes da Cidade, ou da caça de Antonio das Mortes em Deus e o Diabo na Terra do Sol, enfim, no cinema nós não podemos parar o que vemos, pois é da sua natureza o movimento. A sucessão de imagens sem parar.

Além de, é fato, haver obras literárias tão originais que se tornam impossíveis de serem filmadas. A não ser, é claro, como um comentário, ou mero motivo, como um tema de realização. Lembro agora que há uma ponte entre a literatura e o cinema em peças de teatro. Como o teatro se sustenta no fundamental em diálogos, é possível grandes filmes recriados de peças como Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, com Elizabeth Taylor e Richard Burton, ou em Um Bonde Chamado Desejo.

Cena do filme Vidas Secas (1963), adaptado do romance de Graciliano Ramos

Sei da beleza de Vidas Secas, aquelas imagens e composição belas de Nelson Pereira dos Santos. Mas o original de Graciliano Ramos é insuperável. E para não parecer um sectário da literatura, recomendo: leiam o livro e vejam o filme. E não percam a fruição estética de Ladrão de Bicicletas ou de todo Buñuel. Mas se guarde, como pessoa que deseja crescer até o céu, para um impacto de Três Russos, no trecho em que Tolstói nos deixa uma lição fundamental de literatura, gravada por Máximo Górki:

– Em Moscou, perto da Torre Sukharev, num beco, vi no outono uma mulher embriagada. Estava deitada, bem junto ao passeio. Do pátio de uma casa vinha se escoando um enxurro de água imunda, que escorria mesmo por sua nuca e suas costas. A mulher deitada nesse molho frio resmungava, agitava-se. Seu corpo recaía, agitando na imundície. Ela, porém, não conseguia se levantar.

Tolstói estremeceu, fechou os olhos, balançou a cabeça e propôs afavelmente:

– Sentemo-nos aqui…. Uma mulher embriagada é a coisa mais horrível e ignóbil que há. Eu quis ajudá-la a se levantar, mas não pude me decidir a isso. Tive um excessivo desgosto: ela estava tão pegajosa, tão molhada; quem a tocasse não teria sido bastante um mês para limpar as mãos. Que horror! E durante esse tempo estava sentado no meio-fio da calçada um rapazinho louro, de olhos pardos, as lágrimas corriam ao longo de suas faces, fungava e repetia numa voz desesperada: “Ma-mãe… então, levante-se”. Ela mexia os braços, dava um grunhido, erguia a cabeça e recaía de novo, flac! com a cabeça na lama.

Calou-se, depois olhando bem em volta de si, repetiu ansiosamente, quase num murmúrio:

– Sim, sim, é horrível! Você tem visto muitas mulheres embriagadas? Muitas, sim, ah, meu Deus! Não descreva isto, não é preciso!

– Por quê?

Olhou-me nos olhos e repetiu sorrindo:

– Por quê?

Depois disse lentamente com um ar pensativo:

– Não sei. Eu disse isso assim… tem-se vergonha de escrever porcarias. E, no entanto, por que não? É preciso escrever sobre tudo…

Lágrimas vieram-lhe aos olhos. Enxugou-as e, sempre sorrindo, olhou o lenço, enquanto as lágrimas continuavam a correr ao longo de suas faces.

– Eu choro. Sou velho e me aperta o coração quando evoco uma lembrança horrorosa.

E me empurrando ligeiramente com o cotovelo:

– Você também quando tiver vivido sua vida, ao passo que tudo permanecerá como dantes, você chorará, e ainda mais do que eu, “aos baldes”, como dizem as mulheres do povo. Mas é preciso escrever tudo, sobre tudo. De outra forma o rapazinho louro nos quereria mal, nos censuraria. “Não é a verdade, não é toda a verdade”, dirá ele. E ele é severo no que se refere à verdade.

Os escritores russos Liev Tolstói e Máximo Górki

E mais não acrescento, porque sei que grande é o protesto dos amantes do cinema.

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