Dossiê revela desmonte de políticas indigenistas “por dentro” da Funai

Funcionários da Funai, sob sigilo, denunciam que o órgão tornou-se quartel-general da política de extermínio indígena. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips seria parte desta estratégia.

Detalhe da capa do dossiê sobre a Funai

Sob o governo Bolsonaro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem implementado uma política que cabe qualificar de anti-indigenista. Este é o conteúdo revelador de um dossiê de quase 200 páginas realizado pela parceria entre a Indigenistas Associados (INA), Associação de Servidores da Funai, e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Um monitoramento inédito sobre as práticas institucionais da Funai que prova o objetivo de destruição de políticas indigenistas, desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo em 2019. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips tem sido associado a essa estratégia para impedir o trabalho de indigenistas.

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O INA e o Inesc consideram que a Funai tornou-se um “caso gritante” de erosão por dentro da política indigenista, ambiental, cultural, e de relações raciais, naquilo que diferentes pesquisadores vêm demonstrando, ser modus operandi do governo Bolsonaro por meio de mecanismos infralegais e assédio institucional. A novidade do relatório é receber dos próprios funcionários da Funai informações oficiais sobre a atuação nefasta do órgão para esfacelar o aparato estatal de defesa indígena.

O dossiê analisa como a Funai vem trabalhando contra a própria razão de sua existência – proteger e promover os direitos indígenas. Começa com os discursos abertamente anti-indígenas de Bolsonaro, antes da eleição, passando pelo confuso e instável início de governo, até a chegada do delegado de Polícia Federal, Marcelo Xavier. Na Funai, lotada por policiais e militares em cargos chave, os especialistas e técnicos passam a sofrer assédio e impedimento de suas funções, assim como inquéritos internos e punições por exercerem suas funções.

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Em declaração ao Portal Vermelho, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) concorda que há uma estratégia do governo contra a população indígena. “Na era Bolsonaro a estratégia para os povos originários é o extermínio. A Funai é absolutamente omissa, enquanto o garimpo ilegal avança em territórios que deveriam ser protegidos”, afirmou.

Orlando também associou o assassinato de Bruno Pereira e Dom Philipps a “mais um capítulo do drama que alcança os povos indígenas”. Nesta quarta (16), durante entrevista coletiva, ele anunciou uma Comissão Externa da Câmara dos Deputados para acompanhar “passo a passo a investigação para que a justiça seja feita”, identificando mandantes e responsáveis pelo crime. O indigenista Bruno Araújo Pereira, que viajava com o jornalista inglês Dom Phillips pela região do Vale do Javari, na Amazônia, era um dos maiores especialistas em indígenas que vivem em isolamento no Brasil e foi exonerado pelo governo Bolsonaro em 2019.

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Na ADPF 709, proposta perante o Supremo Tribunal Federal pela APIB, se afirma que os discursos do presidente da República contra os povos indígenas levaram a ondas de invasões de suas terras, inclusive nas naquelas dos indígenas isolados e de recente contato. O aumento de 80% no desmatamento e na mineração em terras indígenas demarcadas, a partir de 2018, são indícios.

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“Pelo amor de Deus, hoje um índio constrói uma casa no meio da praia e a Funai vem e diz que ali agora é reserva indígena. Se eu for eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho.” Esta é uma das declaraç˜ões públicas de Jair Bolsonaro, em campanha presidencial ao jornal Gazeta, citadas no documento.

Vermelho urucum

O dossiê aprofunda aspectos dessa gestão, demonstrando entraves de ordem burocrática e administrativa à chegada das ações indigenistas nas aldeias e terras indígenas (TIs) e as omissões que vêm desconstruindo o direito indígena à terra e paralisando gravemente a execução da política demarcatória. As normativas da Nova Funai facilitam do acesso de terceiros à posse e à exploração econômica das TIs.

Já no início do governo, a Funai foi transferida do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A atribuição da Funai sobre processos de demarcação, passou para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O agronegócio, que sempre foi visto como interessado em impedir as demarcações que eram atribuição do Ministério da Justiça, passa a decidir sobre elas. Esses são uns poucos e simbólicos exemplos da reorganização do tema no atual governo.

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“O despudor com que a atual gestão da Funai atua contra direitos garantidos aos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro” evidencia-se na análise detalhada da abertura à exploração econômica das TIs, diz o documento. A chefia da Funai estende seu anti-indigenismo à esfera judicial. Até o vermelho do urucum das artes indígenas passam a ser proibidas em órgãos indigenistas do governo.

Segundo o dossiê, a “perversidade” ganha sentido adicional, quando se percebe a triste coerência, que a resistência da Funai em atuar em TIs que ainda não têm suas demarcações homologadas por Bolsonaro, mantém com a desproteção geral e com o enfraquecimento da política demarcatória.

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