Contra vale-tudo dos aplicativos, centrais e governo avançam na regulamentação

Reivindicação da categoria e bandeira de Lula, a busca por direitos dos trabalhadores por aplicativos contra a precarização está na pauta do governo e do setor sindical

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Após anos de vale-tudo, com anuência por ação ou omissão do governo federal, a realidade dos trabalhadores por aplicativos pode finalmente mudar. Se antes entidades sindicais, grupos de trabalhadores e outros segmentos sociais tentavam, em vão, ser ouvidos sobre a grave precarização do trabalho imposto pelas plataformas e a necessidade urgente de regulamentá-las, agora, com Lula na presidência, finalmente abriu-se um canal de diálogo com o Executivo. 

“As empresas de aplicativos precisam ser reguladas, numa nova relação mercado, capital e trabalho, porque, se não, os trabalhadores estão quase se colocando como escravos”, disse o presidente Lula na terça-feira (7). 

Para dar conta da empreitada, após reunião com representantes sindicais, de aplicativos e trabalhadores, ocorrida no dia 19 de janeiro, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, criou um grupo específico para tratar do tema. Também foi estabelecida uma agenda para que as principais demandas possam ser discutidas e sistematizadas junto às bases e as entidades.

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Esse conjunto de propostas deverá ser apresentado na próxima segunda-feira (13). Depois, no período de 13 a 17 de fevereiro, serão realizadas reuniões com cada central sindical para tratar de suas propostas e indicar diretrizes de estratégias de atuação. Entre 23 e 28 de fevereiro, o Dieese fará a sistematização desse material e, em data a ser definida, ainda no começo de março, haverá nova reunião para deliberar sobre as propostas unificadas e estratégias de ação, além da formação de uma Mesa de Negociação da Bancada dos Trabalhadores. 

Diagnóstico e propostas

Há tempos sabe-se que o mundo dos aplicativos é uma terra sem lei para prestadores de serviço que, imbuídos do discurso do empreendedorismo, muitas vezes não se enxergam como trabalhadores. Isso, claro, faz parte da engenharia do capitalismo. Assim como faz parte o fato de que, travestidos de ferramentas da modernidade que facilitam e barateiam o dia a dia dos usuários, os aplicativos, por outro lado, são danosos para aqueles que são os verdadeiros responsáveis pelos seus lucros astronômicos. 

A informalidade e a falta de vinculação trabalhista são a base do lucro do negócio. Acontece que com o aumento da exploração, com o crescimento dos acidentes e com as dificuldades — econômicas, sociais e de saúde física e mental — cada vez mais evidentes para trabalhadores, aumentou a mobilização, dentro e fora do Brasil, para mudar tal situação. 

Manifesto recém-divulgado pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet) e assinado por uma série de pesquisadores e instituições aponta que “o modelo de negócio das empresas-plataformas tem implicado em salários insuficientes e continuamente rebaixados, jornadas exaustivas, graves acidentes de trabalho, falta de recolhimentos previdenciários e tributários e fragmentação das organizações coletivas dos trabalhadores, impondo a absoluta ausência de proteção e segurança social”. 

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Além de fazer um diagnóstico, a Abet apresenta uma série de questões com o objetivo de contribuir para o debate proposto pelo governo. Entre as balizas apontadas estão, entre outras, o reconhecimento do vínculo de emprego; a regulação pública como forma de atenuar a desigualdade de poder; a garantia de direitos trabalhistas como salário, jornada máxima de 8 horas, intervalos, férias e 13º salário e proteção social.

Renê Vicente. Foto: reprodução

Caminham neste mesmo sentido as proposições que vêm sendo debatidas no meio sindical. Renê Vicente, presidente interino da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), destaca: “aquilo que antes era apenas um bico, uma forma de agregar um dinheiro à renda, hoje virou rotina. Esses trabalhadores fazem jornadas exaustivas de 16 horas, em casos extremos de até 20 horas”. 

Ele lembra que além de não terem nenhum direito,  são obrigados a arcar com a compra  e manutenção de seu instrumento de trabalho — sobretudo carro, moto e bicicleta — “e em média 35% a 40% dos seus ganhos diários vão para as empresas de aplicativos. É uma situação de extrema precarização”. 

Nesse cenário, as entidades estão empenhadas em dialogar com os trabalhadores e trazer à tona as principais reivindicações a fim de buscar contemplá-las no processo de regulamentação. 

Gil, do Sindimotos-SP. Foto: Sindimotos-SP

Gilberto Almeida dos Santos (Gil), presidente do Conselho Nacional dos Sindicatos dos Motofretistas, Motoboys, Motoentregadores e Ciclistas do Brasil — entidade que, segundo suas estimativas, representa entre 850 mil a um milhão de trabalhadores — aponta que as principais reivindicações da categoria são “piso mínimo com índice de reajuste anual; adicional de periculosidade, valor do quilômetro e hora e o fim dos bloqueio sem prévio aviso, além de benefícios como seguro de vida,  seguridade social, 13º salário, férias e descanso remunerado, despesas da moto (gasolina, óleo e pneu), vale-refeição e cesta básica”. 

Para Vicente, da CTB, esses trabalhadores são sujeitos a regras e têm metas a cumprir, o que caracteriza vínculo empregatício. “Então, deveriam ser amparados pela lei, ser regidos pela CLT, para que que eles tivessem os seus direitos garantidos”, afirma.

A central, explica, defende como meta políticas públicas e mudanças estruturais do ponto de vista da regulação dessas empresas, com especial atenção à remuneração e aos direitos básicos da categoria. “Achamos que esse trabalhador tem que ter uma remuneração mínima, uma jornada mínima e máxima de trabalho, um piso básico por hora e tem que ter um vínculo presumido na prestação dos serviços que ele faz a essas empresas. Temos de nos preocupar também com a saúde, com a segurança e com a seguridade social”. 

Neste arcabouço entram ainda a licença-maternidade; política de percentual de renda mínima; seguro para o caso de acidentes; um banco de registro integrado de aplicativos; realização de um mapeamento das doenças ocupacionais; pausa de almoço mínima de uma hora; implementação de pontos de parada com acesso a banheiros, energia elétrica, bebedouro e internet; a possibilidade de afastamento sem perdas em casos de problemas de saúde e acidentes, entre outros. 

Ricardo Patah, da UGT. Foto: reprodução

Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT), diz que “a principal preocupação da entidade é a vida: é a necessidade de um seguro de vida, um seguro da moto e medidas como tomamos aqui em São Paulo, junto com os motoboys, quando sugerimos e agora foi implementada a linha azul”. Patah se refere à faixa exclusiva para motos estabelecida em algumas vias de grande tráfego na capital paulista. 

Iniciativa e entraves

Os representantes das centrais avaliam positivamente a iniciativa do governo, o que torna a disputa entre trabalhadores e empresa menos desigual para o lado mais fraco do pêndulo e possibilita que haja regras arbitradas a partir do Estado.

Índio, da Intersindical. Foto: Marcelo Cruz

“A iniciativa do governo Lula é muito importante. O Brasil não pode assistir inerte esse processo de barbarização das relações de trabalho imposto pelas empresas e plataformas. É preciso que o Estado atue na regulação, estabelecendo direitos garantidos pela Constituição Federal também para esses trabalhadores. É preciso garantir o vínculo que a lei estabelece para as relações de trabalho. É fundamental restabelecer nesse setor os princípios constitucionais da valorização do trabalho, da dignidade da pessoa humana e do não retrocesso social”, aponta Edson Carneiro Índio, secretário-geral da Intersindical. 

Para ele, o principal entrave que pode haver no processo é “o interesse das grandes empresas e plataformas que querem manter o vale-tudo contra o trabalhador, sem direitos, sem regras, sem organização, submetidos a todo tipo de exploração”. 

Ele defende que “diante da barbárie em que se transformou o mercado de trabalho nesse setor, é fundamental a unidade do movimento sindical com os trabalhadores de aplicativos para fazer avançar uma regulação que garanta o patamar mínimo civilizatório estabelecido pela CLT e a Constituição Federal de 1988”. 

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Em meio à queda de braço que o debate tende a ser, Ricardo Patah, da UGT, diz que é preciso “encontrar uma voz que possa pacificar o entendimento entre os trabalhadores e junto aos empresários e ter um diálogo equilibrado, transparente, buscando alternativas que possam impedir as situações de precariedade e letalidade nas atividades. Tenho certeza que nesse governo, nós vamos conseguir equacionar esse problema”. 

De acordo com Renê Vicente, da CTB, a avaliação da central é a de que um dos principais entraves para viabilizar essa regulamentação pode estar no Congresso Nacional. “Nós ganhamos o Executivo, Lula se elegeu presidente, mas em relação ao Congresso, nós tivemos uma renovação tímida, a representação dos trabalhadores continua baixa e é um Congresso conservador, praticamente o mesmo que apoiou a a Reforma da Previdência”, lembra. 

Por isso, diz, “é necessário, e nós acreditamos, na unidade desses trabalhadores, na mobilização, na pressão popular para que essa atividade seja regulamentada. Acho que essa é a principal tarefa que tem não só a CTB como as demais centrais sindicais para que a gente possa pressionar Congresso e que se aprove uma legislação favorável a esses trabalhadores e trabalhadoras”.