O pior jogador do mundo

Mauro Shampoo desperta boas risadas em diversos momentos. Jogador do Íbis Sport Club, que por justiça ganhou o título de “pior time do mundo”

Em um documentário de 2006, “Jogador, cabeleireiro e homem”, o ex-jogador Mauro Shampoo desperta boas risadas em diversos momentos. Jogador do Íbis Sport Club, que por justiça ganhou o título de “pior time do mundo”, Mauro Shampoo se revela um atleta digno do pior time em uma fala. A certa altura, ele declara que em toda sua vida profissional, de feroz e perigoso atacante, marcou um só e somente um gol. Claro, esse raro tento não foi um gol contra. Na posição em que jogava, ele poderia acrescentar, nada modesto, que precisaria ser um gênio da bola para, frente a frente com o arco e arqueiro inimigo, marcar de costas um gol contra a própria rede.

Mas quando saíamos do cinema, Mauro Shampoo me despertou algumas recordações, em forma de futuro, digamos. Como seria mesmo o pior jogador de futebol do planeta? Se o melhor parece indiscutível, quase um dogma, Pelé, como e quem poderia ter sido o pior? Ainda que todas as classificações, todos os rankings se tornem frágeis quando recebem uma crítica mais serena, ainda assim poderíamos estabelecer alguns critérios, antes que os vencedores subissem ao pódio desse campeonato invertido.

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No primeiro critério, os jogadores titulares, os reservas dos piores times do mundo, por mais desgraçados que fossem, não teriam direito a qualquer honrosa classificação. E esse critério, em bom ou mau juízo, não seria arbitrário. A razão é que os jogadores desses times, por piores que fossem, são profissionais – bem ou mal vivem de futebol, e se assim recebem pagamento por seus talentos, por mais discutíveis, algum valor de excelência possuem. Entre os piores, eles não seriam os primeiros.

No segundo critério, deveríamos excluir desse especial ranking os jogadores de times amadores, de subúrbio, de cidades longínquas, de povoados. A razão desse impedimento, mais uma vez, não é arbitrária. Tais jogadores, por suas habilidades, foram e são os melhores para a seleção local. Queremos dizer, esses homens, algum valor, têm, porque recebem uma escolha da sua comunidade. Os times amadores, é histórico e sabido, aqui e ali são fornecedores de estrelas para os times profissionais, até mesmo para os times da primeira divisão.

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Em um terceiro critério, e o leitor já percebe o quanto o de ruindade é fundo, deveríamos pôr fora os jogadores que se escalam para o futebol de fim de semana, os que se escolhem para jogar de brincadeira, por lazer e diversão. Os jogadores de pelada. Estes também se excluem do ranking. Conforme já vimos no texto “A minha primeira brazuca”, mesmo entre esses jogadores há uma elite, um critério, como dizê-lo, há um critério hierárquico. Para eles, para seus valores de ocasião, jogam apenas os melhores jogadores, os melhores que podem ter em um raio de 1 metro de distância. Excluam-se então estes do ranking. Dos piores não são os mais piores, digamos assim.

Chegamos então aos que sobram, aos que não conseguem ter vez nas seleções dos piores times profissionais, amadores e das peladas de fim de semana. Mas por favor nos acompanhem, e nos entendam. Poderíamos, mesmo aqui, cometer alguma injustiça. Não falo em defesa dos pernas de pau. Dos pernas de pau-brasil. Não. O problema é que entre esses jogadores excluídos há muitos e muitos injustiçados. Existem aqueles que passam por maus momentos em suas carreiras de amadores. Se os melhores têm bolhas nos pés, unha encravada, acidente no traseiro, obesidade e problemas no amor com modelos, pois modelos também amam, por que os piores seriam excluídos dessa felicidade? “Felicidade” porque desculpam, queremos dizer. Sim, por que devemos excluir os menos imortais? Os piores também podem atravessar uma má fase, como se diz das estrelas. Maradona, Zidane, Pelé, Ronaldo, todos sofrem. Então, por justiça, os Joões e Josés têm esse direito. Isso por um lado. Por outro, os jogadores rejeitados nas peladas de fim de semana, mirem só que qualificação extensa, os jogadores rejeitados nas peladas de fim de semana, todos jogam por prazer, por hobby, como falavam os esnobes em 1970. Ou seja, esses jogadores não se empenham, não põem alma nos pés, não dão o sangue, todo o sangue. Daí que, com o espírito em baixa importância, em “baixa-estima”, como falam, quando querem mesmo rebaixar até a a língua portuguesa, daí que joguem tão mal. Diríamos, até, pior que os outros.

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Então chegamos aos piores de fato, abaixo e acima de todos os critérios. Aos que jogam com alma, com paixão, compaixão, que não pensam em outra coisa, só em pelota, gol e futebol, todo o tempo. Chegamos aos que, apesar de todas essas condições subjetivas, produzem e jogam objetivamente mal o objeto da bola. Mal e mal, de mal a pior. Chegamos aos que são ruins demais por natureza, por força e característica da sua infeliz índole. Aos que jogam mal com toda naturalidade. E nem parecem. Dizem até, nem parecem jogar. Eles formam uma segunda natureza, artística. Pois não dizem que a melhor arte oculta a sua arte? Pois então: eles, os absolutos, perdem gols imperdíveis, não sabem cabecear, chutar, defender, em resumo, são total avessos e estranhos ao objeto esférico. Se chutassem pedras, cubos ou poliedros excêntricos, seriam melhores jogadores. E, bravo, olé, olé, cometem esses prodígios por mais que se esforcem em ser e cometer o contrário. O diabo é que a bola gira, por desgraça, e o contrário da bola é a bola mesma, sempre. Se com eles o futebol não triunfa, com muita propriedade triunfa uma natureza. Uma força incoercível.

Agora chego ao pódio. Eu conheci, ao longo dos meus 72 anos, uns dois indivíduos assim. Por uma questão de ética, não lhes digo os nomes. Se Mauro Shampoo dizia que em toda a sua vida profissional somente marcou um gol, eu devo dizer que essas raras naturezas jamais fizeram um só, em todas suas vidas. Ainda que se matassem em campo para a explosão dessa felicidade. Gooool, nunca. De um deles, que tive o vexame de conhecer mais de perto, devo dizer que chegou a cometer um. Contra. Veio ajudar a defesa e, registram os inimigos, conseguiu. Mas desse último não denunciarei o nome. Porque acredito que jamais seria ético, se eu não fosse também modesto.

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