Urariano Mota: A difamação de Górki e a literatura engajada

Novas gerações acadêmicas reduzem a visão do mundo da arte a “linguagem”. A defesa da vida, segundo eles, deve ficar para o discurso político, em outra instância e lugar

O escritor russo Máximo Gorki (1868-1936), em três momentos: visita a Tolstói (foto maior); encontro com Lênin; e em conversa, entre Klement Vorochilov e Stálin

Faz 30 minutos que li o texto sobre o qual anoto duas ou três coisas a seguir. Escrevo este artigo no calor da primeira hora. No Face, sou amigo da escritora Noemi Jaffe. Portanto, nada pessoal. Quero dizer:

Li há pouco o artigo “Mulher que salvou poesias proibidas decorando versos inspira livro de Noemi Jaffe”, publicado hoje (10) na Folha de S.Paulo, em texto de Mauricio Meireles. Nele, pudemos ler:

Afinal, que diferença faz um poemazinho só para o novo czar? Nadejda, por exemplo, chama Górki de vigarista.

“Não imaginamos que um escritor também possa exercer seu pequeno poder de forma tão autoritária. E Górki era responsável por designar as rações dos escritores. Ele se recusou a dar uma calça para o Mandelstam”, diz Jaffe. “Aqui no Brasil, você vê figuras como a Regina Duarte. Ou o Roberto Alvim, que fez aquele discurso nazista. E há outros artistas.”

Ora, se houve algum episódio em que Górki não tenha agido de modo decente em relação a outro escritor (o que não acredito, mas concedo a uma infeliz surpresa), a sua fama de um dos maiores escritores daqueles anos era, pelo contrário, de um grande incentivador, descobridor de escritores na União Soviética. E não são poucos nem pequenos aqueles a quem Górki protegeu e chegou mesmo a correr sérios riscos nessa defesa.

A escritora Noemi Jaffe, autora do novo e polêmico romance O Que Ela Sussurra

De imediato, me ocorrem Isaac Bábel e Vassili Grossman – dois imensos a quem Górki defendeu. E, nesse particular, vale a pena lembrar este depoimento de Isaac Bábel: “No final de 1916, conheci Górki. Devo tudo a esse encontro, e até hoje pronuncio o nome de Aleksei Maksímovitch com amor e gratidão”. E sobre Isaac Bábel escreveu Górki em carta a André Malraux: “Ele é o melhor que a Rússia tem a oferecer”.

Se querem difamar um grande homem e escritor, difamem. Mas procurem ao menos guardar alguma coerência histórica. Górki sempre esteve contra a corrente. E se ganhou cargos e responsabilidades na União Soviética, não foi por adulação à nova ordem.

Aliás, não podemos nem devemos ficar nesta falsa encruzilhada: para elogiar um grande poeta, teremos que jogar pedras em todos ao redor do mundo socialista. De passagem, isso me lembra o falso dilema dos que escolhem Lima Barreto contra Machado de Assis. Ou, no reino da música popular, quem elege Wilson Batista contra Noel Rosa. Ou Caetano Veloso contra Chico Buarque.

Essa é uma batalha perdida. O valor de um artista nunca se faz contra outro. Para onde vai a excelência artística, vão todos de fato excelentes. Deixemos o fla-flu no fla-flu. E, por favor, não se misture a necessária posição política de um grande escritor a Regina Porcina e ao nazistinha Alvim. São líquidos imiscíveis.

Rivalidades típicas de um Fla-Flu não devem contaminar juízos sobre um artista

Já no fim do texto, Maurício Meireles escreve:

A escritora acrescenta a importância de se evitar o engajamento panfletário.

“Esse tipo de literatura com causa é quase a antiliteratura. É como se fosse uma linguagem a serviço da causa. E a literatura não pode estar a serviço de nada. É a única linguagem que é livre.”

Se Noemi Jaffe assim falou, se a transcrição é fiel, direi que “pegou pesado”, para usar uma expressão dos mais jovens. Muito. E de um modo mais injusto. Mas essa opinião sobre literatura engajada é comum em novas gerações acadêmicas, que reduzem a visão do mundo da arte a “linguagem”. A defesa da vida, segundo eles, deve ficar para o discurso político, em outra instância e lugar. E assim caminham para uma literatura asséptica, de palavras em sua pura ausência da realidade suja, fora da defesa de pessoas e do mundo.

Eu não sei como poderiam classificar estes parágrafos:

Cada vez que pegavam um novilho do cercado e o arrastavam para a frente com uma corda atada aos chifres, ele sentia o cheiro de sangue e resistia, às vezes mugindo e recuando. Arrastaram-no. Ele abaixou a cabeça e resistiu, decidido. Mas o açougueiro que ia por trás agarrou o rabo, retorceu-o, estalou a cartilagem e o boi saiu correndo para a frente, batendo nas pessoas que o puxavam pela corda, e de novo resistiu, olhando com o rabo do olho preto e a esclerótica injetada….

– Qual é o sentido da justiça?
– A manutenção dos interesses de uma classe. O tribunal tem o único propósito de conservar a sociedade na situação atual e para isso persegue e executa tanto aqueles que se encontram acima do nível comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos políticos, como também aqueles que se encontram abaixo, os chamados tipos criminosos.

Perdoem se misturo matadouro a diálogo sobre sistema penal. Faz sentido, creio. E depois, como prova da excelência da literatura engajada, ambos trechos saíram da pena do eterno Tolstói.

O escritor Tolstói, ao lado da esposa, Sophia: excelência da literatura engajada

Pois o que é o engajamento panfletário? Será aquele em que a revolta contra esta ordem do mundo aparece nas páginas de uma obra? Então haveríamos de expurgar do conhecimento humano um poema como O Navio Negreiro, ou um livro como Memórias do Cárcere, um romance como Ressurreição, ou toda obra de Brecht, para falar em algumas obras da antiliteratura, cuja linguagem se encontra a serviço de uma causa. Ah, mas os exemplos a serem cortados da nossa humanidade são tantos, que eu ia esquecendo a Carta a Stalingrado, aquela bomba de resistência do poeta Carlos Drummond de Andrade. E nem me lembrei do engajadíssimo Primo Levi.

Melhor ficar por aqui. Sei que agora estou marcado como um autor que escreve literatura engajada. Marcado como no samba de Paulinho da Viola. Mas quem sou eu pra esquecer o que passei?

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