Censo escancara drama da moradia: imóveis vazios e milhões sem teto

País tem 11,4 milhões de imóveis vagos e 6 milhões de pessoas sem casa. Para especialistas, programas de moradia, uso de prédios vazios e IPTU progressivo podem reduzir déficit

Foto: Marcelo Camargo/EBC

O Censo 2022 expôs um problema que, apesar de antigo, está longe de ser totalmente solucionado: a falta de moradia, que atinge milhões de brasileiros. O déficit habitacional piorou nos últimos anos com a crise econômica, o desemprego, a pandemia e a completa ausência de investimentos em políticas públicas — além do desmonte das que existiam — por parte do governo de Jair Bolsonaro. 

De acordo com o Censo, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 90 milhões de domicílios no país, dos quais 11,4 milhões, ou 12%, estão vagos — à venda, para alugar ou abandonados. Aqui, não estão incluídas as casas de uso ocasional, como aquelas oferecidas por sites de hospedagem ou usadas em temporada. Em relação ao Censo anterior, de 2010, o aumento de moradias desocupadas foi de 87% — naquele ano, havia pouco mais de seis milhões de imóveis nessa situação. O cenário revela um número recorde de habitações vagas. 

Por outro lado, sobra gente sem lugar para morar ou que vive em condições inadequadas. Segundo dados da Fundação João Pinheiro, de 2019, há cerca de seis milhões de pessoas sem lar e quase 25 milhões vivendo em moradias precárias. E também existem aproximadamente um milhão de famílias sob ameaça real e imediata de despejo, seguras ainda pelos desdobramentos da Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que tramitou no Supremo Tribunal Federal e suspendeu as remoções durante a pandemia.

Na matemática fria, e considerando apenas os que não têm casa, seria  possível ocupar esses imóveis vazios e ainda sobrariam milhares. Porém, mesmo com essa margem, a conta não fecha porque os locais não estão disponíveis para quem precisa. 

Segundo especialistas, os dados trazidos pelo IBGE ainda demandam análise mais aprofundada, com detalhamento das informações para entender melhor esse aumento de moradias desocupadas, mas dentre as razões que vêm sendo apontadas para explicar essa situação estão, por exemplo, a desvalorização de áreas, como os centros de grandes cidades; mudanças de hábito que incluem a busca por condomínios fechados; questões ligadas a heranças; migração para outras cidades e empobrecimento da população. 

Mas, há outro fator especialmente cruel nessa equação: a formação proposital de estoques de imóveis por proprietários, na espera de que sejam valorizados para, então, negociá-los, no processo conhecido como especulação imobiliária. Assim, quem tem dinheiro enriquece mais, enquanto milhões ficam sem ter onde morar ou são empurrados para bairros cada vez mais longínquos e desprovidos de infraestrutura urbana e equipamentos públicos. 

Ação do Estado

“Acho que a saída para esse problema é uma visão de Estado sobre quem precisa ter prioridade no país. Constitucionalmente, ter moradia digna é um direito do cidadão e da cidadã. E a gente vê que isso nunca foi respeitado. O próprio Estatuto da Cidade, por exemplo, estabelece o uso da propriedade para fins sociais”, disse, ao Portal Vermelho, o professor José Marcos da Cunha, do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo) da Unicamp. 

Para Cunha, o problema é que a lógica da propriedade privada “é o que prevalece num país totalmente desigual, em que as pessoas tiveram acessos diferenciados a vida inteira. Você vê muitos imóveis sobrando, mas esses imóveis não são acessíveis para a maioria da população”. Neste sentido, além de programas como o Minha Casa, Minha Vida, ele defende o uso de locais vazios nas cidades para a moradia popular. 

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O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem se dedicado ao tema da moradia como um dos elementos para a superação das desigualdades e da pobreza, ponto central de seu terceiro mandato. No dia 13 de julho, Lula sancionou a lei criada a partir de medida provisória, aprovada no Congresso, do novo programa Minha Casa, Minha Vida, que tem como objetivo contratar 2 milhões de habitações até 2026, com recursos do orçamento da União e de financiamentos via FGTS. 

Outra medida que vem sendo aventada pelo governo vai ao encontro da ocupação de imóveis vazios — no caso, a possibilidade de se utilizar prédios e terrenos da União para moradia popular. “Em vez de levar o povo para morar 20 quilômetros distante do centro da cidade, leve o povo para onde já tem escola, asfalto, energia elétrica e linha de ônibus”, disse o presidente ao sancionar a lei do MCMV. Ele defendeu a adaptação de imóveis públicos abandonados para serem usados como unidades habitacionais. Só do INSS, disse, são cerca de 3 mil. 

Função social

“Com a ruptura democrática em 2016, que levou ao fim dos conselhos, entre eles o das Cidades, a gente acabou tendo um retrocesso muito grande nesses últimos sete anos no Brasil. No nosso entendimento — e já temos debatido isso com o Governo Federal —, além de retomar o Minha Casa Minha Vida, é preciso adequar imóveis abandonados, muitos deles públicos, mas também particulares, em especial nos grandes centros, para que sirvam de moraria. Os centros das grandes cidades são locais que já têm infraestrutura urbana, serviços e equipamentos públicos e muitos espaços vazios”, explica Getúlio Vargas Júnior, presidente da Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores). 

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Outro passo importante que ele cita para avançar no debate para a busca de soluções para o déficit habitacional é a retomada do Conselho das Cidades. “Já existe o compromisso do presidente de retomar, em até dois meses, o Conselho Nacional das Cidades e os movimentos de moradia já estão conversando com o Ministério das Cidades”, pontua Vargas Júnior.  Ele também defende que até meados de 2024 seja realizada a Conferência Nacional das Cidades, para envolver a população e os movimentos desde a base. 

O dirigente da Conam aponta ainda que, com relação aos projetos habitacionais, “não basta simplesmente retornar para o patamar de 2013 ou 2014, no pré-golpe. É preciso dar um salto de qualidade porque a gente passou por um período muito duro. Se não fosse a ação dos movimentos junto ao STF, com a campanha Despejo Zero, mais de um milhão de famílias poderiam ter sido despejadas, além das que já foram durante a Covid-19, ou seja, a gente teria tido uma pandemia seguida de outra ‘pandemia de despejos’ no Brasil”. 

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Os movimentos de moradia também defendem que sejam colocados em prática, de maneira ampla, instrumentos como o IPTU progressivo, previsto no Estatuto da Cidade. A Lei 10.257, que o instituiu, estabelece uma série de dispositivos para as prefeituras implementarem nos seus planos diretores. “Mas, o que temos visto é que aquilo que é bom para o mercado, que agiliza o ordenamento e o loteamento das cidades, sai do papel com muita facilidade. Mas o IPTU progressivo e outros instrumentos que constam no Estatuto para que as cidades incorporem nos seus planos diretores e  façam aquilo que está na Constituição, de que a cidade e a propriedade precisam cumprir a sua função social, a gente vê que ainda não saiu do papel. Esse é um grande desafio que temos pela frente”, diz o presidente da Conam. 

Para Getúlio Vargas Júnior, este não será um processo fácil, “mas essas questões precisam ser debatidas para que não se fortaleça a especulação e se priorize o aspecto social, de maneira a priorizar famílias de baixa renda e fortalecer a democratização do acesso à cidade, em contraposição a essa visão predominante que coloca a cidade e a moradia como mercadorias”. E conclui: “É um debate que tem de ser feito logo porque quem precisa morar tem pressa”.